São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Violência silêncio

NUNO RAMOS
BRUCE NAUMAN

Neal Benezra e Kathy Halbreich (org.) Joan Simon (editor) Walker Art Center, Catálogo, 218 págs. US$ 37,88
Diante de um trabalho como o de Bruce Nauman, que fez do adiamento permanente de uma feição acabada um de seus principais atributos, o catálogo de sua primeira exposição abrangente nos EUA, realizada entre 1993 e 1995 em quatro dos principais museus norte-americanos (além de uma temporada no Reina Sofia, de Madri), procedeu de modo competente e tradicional. Seccionou os textos em quatro temas dominantes (aspectos gerais do trabalho, política e corpo, linguagem, atitude do artista em relação ao público -de autoria, respectivamente, de Neal Benezra, Paul Schimmel, Robert Storr e Kathy Halbreich) e seguiu a evolução do trabalho de Nauman com reproduções dispostas em ordem cronológica, além de prestar os serviços de sempre: bibliografia seleta e cronologia das exposições. Se não chega, no entanto, a tomar o lugar de um ``catalogue raisonné" (por sinal, em preparação pela mesma equipe), não se limita à exposição que o gerou, dando conta, na medida em que o papel aguenta, das principais preocupações deste grande artista.
É difícil, de fato, falar de um autor que tem como um de seus motes principais a fratura da idéia de estilo. Não que o trabalho de Bruce Nauman faça a apologia, pós-moderna e politicamente correta, da diversidade. É que muito do que se encontra ali soa um pouco como modelo, modelo de como se anda, de como se está num quarto vazio, de como se caminha num corredor, modelos para túneis.
Esses modelos, no entanto, não correspondem a conteúdos universais, e acabam servindo antes para tornar insuficientes (já que são modelos de algo) os objetos à nossa frente, singularizando-os através de uma espécie de idiotia. ``Meu sobrenome exagerado 14 vezes verticalmente" (reprodução 13), um néon azul de 1967, trata de uma ação simples, a assinatura de um nome, que sofre cinco especificações: é o sobrenome (primeira especificação) do autor (segunda) exagerado (terceira) 14 vezes (quarta) verticalmente (quinta). Só a ironia e o humor sobrevivem a este excesso de singularidade que não pode, evidentemente, desdobrar-se. Daí a dispersão estilística desses trabalhos.
O espectador talvez tenha a impressão, diante de tanta diversidade, que estes trabalhos se referem a um sistema, que não percebe, como a ponta de um iceberg à montanha submersa. Esta espécie de arquitetura secreta tem provavelmente sua origem no primeiro modernismo, filiando-se àquela desproporção radical entre aparência e significado inaugurada pelo ``Grande Vidro", de Duchamp. O produto plástico passa a ser a cifra de um movimento assimétrico a ele, uma máquina meio arbitrária de produzir significados, responsável, ao lado do gênio picassiano, pela expansão violenta do conceito de escultura neste século. Ao contrário, no entanto, da bula irônica de Duchamp, ou quase religiosa de Beuys, em Bruce Naumam esta arquitetura secreta é seu próprio corpo (entendido sempre como mecanismo), seu nome próprio, uma ação trivial, um jogo de crianças ou um paradoxo de linguagem, tornando quase impossível a criação de um significado, de um interior. Somos, portanto, continuamente expulsos das obras que vemos e dos significados que elas despertam e só nos restaria aquela pergunta meio cansada que tanta gente se fez diante de um Carl Andre ou de um Donald Judd: mas será só isto?
Estamos, portanto, no terreno clássico da arte norte-americana dos anos 60, que pode talvez ser definida como um grande movimento de negação do expressionismo abstrato e de seu artista maior, Jackson Pollock. O trabalho de Bruce Nauman é, neste sentido, tributário do ataque minimalista à idéia de forma, congelada pelo recurso à série, e do ataque pop à idéia de sujeito. O que é particularmente intenso em Bruce Nauman, no entanto, é que, embora tributário desta desmistificação da arte a que se propuseram a pop e a minimal (ao mesmo tempo em que se institucionalizavam cada vez mais), seu trabalho destila ainda uma prosa rarefeita e venenosa, preservando numa última trincheira o caráter alusivo da arte, para além das aventuras com o seu conceito.
Creio que Bruce Nauman conseguiu unir a uma preocupação intensa com a idéia de limite, do que pode ou não pode ser dito (em suma, uma reflexão sobre a linguagem), um pensamento original e quase único sobre a violência, recuperando paradoxalmente para a cultura norte-americana este tema tão presente já no expressionismo abstrato. Cervos e cães esquartejados, palhaços que defecam, cadeiras invertidas em posição de tortura, casais que se matam, corpos tratados como maquinismos, atravessam todo o trabalho de Bruce Nauman, numa espécie de retorno e costura em meio à dispersão estilística.
Se compararmos seus corredores claustrofóbicos vigiados por câmeras e suas salas triangulares com luz colorida com os ``Penetráveis" de Hélio Oiticica -trabalhos que incluem o espectador e que foram produzidos quase simultaneamente (no final dos anos 60)-, veremos a diferença entre ser tratado como um corpo grávido cheio de possibilidades ou ser tomado por um rato num experimento de algum Pavlov ensandecido. Todo o esforço de Nauman parece ser o de expulsar a violência do âmbito do sujeito, afastando a gordura da angústia e os espasmos de potência para alcançar as coisas mesmas e a linguagem que nomeia estas coisas (e que, como mostram seus néons, é ela mesma uma coisa). Quer compreender a crueldade e o horror não como alteridade com a qual o sujeito se mede, mas com o desencanto de quem percebe como funcionam bem no mundo, naturalizados, entranhados em seus mínimos detalhes. Olhar um trabalho de Bruce Nauman não é incomodar-se com o ``apenas isto" do objeto à nossa frente, mas com o ``apenas isto" do conteúdo violento e cruel que ele emite.
Para trazer de volta o contágio do mundo sem recorrer à paixão de um eu poderoso, creio que a estratégia de Bruce Nauman (e trata-se sem dúvida de um estrategista) é recuar a uma reflexão em segundo grau, trabalhando com os conteúdos do mundo já sintetizados, já tornados linguagem e hábito. Embora tributário, neste sentido, da pop, a matéria trabalhada por Bruce Nauman não é o ícone explícito (latas de sopa Campbell, bandeira americana), mas a gag implícita, o ato falho, aquilo que somos sem ser, que sabemos sem saber, as frases que dizemos sem dizer, que se dizem através de nós.
Se seus trabalhos incomodam tanto, é por seu comércio poderoso com o modo como as coisas de fato funcionam. O que querem, aliás, antes de mais nada, é funcionar (este é seu único entusiasmo), prendendo o espectador em seu mecanismo, e são perfeitamente bem sucedidos nisto. Camuflados na banalidade das coisas, deslocam e pervertem o modo como falamos, o modo como andamos, aquelas regiões onde nos sentimos seguros, e propõem, a partir de um ``insetário" de frases feitas, cenas triviais e movimentos banais do corpo, uma versão infernal daquilo que naturalizamos sem perceber.
Nesses trabalhos, tudo é tristemente repetitivo, num uso bastante particular da seriação minimalista. Afinal, se para a ``minimal" a seriação livra o artista de tensões formais (proporção, acento, relação entre as partes etc.), para Bruce Nauman ela é, antes de mais nada, repetição no tempo, duração. Os néons, vídeos e algumas instalações que utilizam estes elementos duram insuportavelmente, transformando-se, um pouco como a música minimalista, em labirintos no tempo, de onde parece que não vamos sair nunca. Estamos condenados a um jogo idiota de repetições, que seria fácil recusar se não fosse, no entanto, tão familiar. O que nos pega desprevenidos é nossa adesão ingênua, quase instintiva, àquele inferno, onde entramos sem perceber, como se sempre estivéssemos lá.

ONDE ENCONTRAR
No The Museum of Modern Art (11 West 53 Street, New York, NY, 10019); encomendas podem ser feita à Livraria Augôsto Augusta (r. Augusta, 2161, tel. 011/282.1830, fax 011/280.1013, São Paulo)

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