São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Rirá melhor quem zurrar...

FRANCISCO DE OLIVEIRA
O ANJO TORTO - ESQUERDA (E DIREITA) NO BRASIL

Emir Sader Brasiliense, 200 págs. R$ 15,00
No seu enxuto e bem cuidado livro, Sader descreve e interpreta a trajetória da esquerda mundial e brasileira. Sua primeira parte é dedicada à esquerda no mundo, desde a Revolução Francesa, enquanto a segunda trata do Brasil no período em que coincidem emergência do movimento operário e inícios da industrialização. Como seu antípoda, a direita também é resumidamente descrita nessa longa viagem histórico-política.
Sem embargo de objetivos aparentemente limitados para o livro, Sader problematiza temas que, se não são novos, são encarados de frente, inclusive a caracterização dos regimes do ``socialismo real" como ditaduras políticas, embora tenham alcançado um grau incomparavelmente mais alto de democratização econômica e social, comparadas a sociedades capitalistas. Algumas destas alçaram-se a uma democratização política superlativa e níveis de vida muito superiores ao do mundo socialista, enquanto a democratização econômica e social viu-se abafada pela contradição da propriedade privada, que Rousseau já havia pressentido como a ameaça principal à cidadania.
O paradoxo é uma contradição. Tanto o capitalismo não pode ser econômica e socialmente democrático, porque o seu princípio motor, a apropriação privada, é por definição desigualitário, quanto o ``socialismo real" não pode ser politicamente democrático, porque o motor de sua reprodução é a anulação da cidadania. Em resumo, os dois sistemas que a modernidade gerou são incompletos, insuficientes e igualmente parcialmente antidemocráticos, por razões opostas.
A segunda parte de ``O Anjo Torto", dedicada à esquerda brasileira, sumaria seus vários momentos, propondo uma periodização que começa com o largo período da hegemonia do antigo Partido Comunista do Brasil, o conhecido Partidão, caracterizado por uma combinação de altíssima repressão na tentativa revolucionária de 1935, fraca elaboração teórica e duvidosas alianças que terminaram em subordinação. O golpe de 1964 liquida, de cambulhada, o populismo e a hegemonia do ``partidão" na esquerda, abrindo-se, a partir de 1967/68, o período que Sader caracteriza como o da luta armada. Longe de anatematizar os grupos que a fizeram, Sader, mui justamente, vê aí o início trágico da elaboração das alternativas de esquerda no Brasil. Liquidados pela implacável repressão da ditadura militar e pela ausência quase total de apoio social, num período de notável expansão econômica, os grupos armados cederão a vez para o socialismo democrático, cuja marca central é a criação do PT, numa conjunção de forças sociais e políticas nunca anteriormente vista em partidos políticos no Brasil.
Mais que resenhar essas duas longas histórias, cuja literatura de resto é vastíssima, sobretudo a que se refere à esquerda mundial, a pergunta que constrói o livro é o que quer dizer e o que significa ser esquerda hoje, no mundo e no Brasil. Recentemente, um antigo membro da esquerda, hoje alçado à Presidência da República, respondeu a essa questão dizendo que ser esquerda hoje significa ser burro. Sader empreende, então, na companhia de Norberto Bobbio -cujo último livro, ``Destra e Sinistra" (Esquerda e Direita, Editora Unesp) serviu para mostrar o atual presidente, ainda em campanha, atualizando-se com uma literatura ``burra"-, a tentativa de responder à espinhosa questão.
O socialismo sempre foi pensado como um projeto mundial, cerne das discussões sobre a Revolução de Outubro, quando, sob Lênin, que depositava na tradição da esquerda as esperanças na revolução européia, a jovem União Soviética começou seu doloroso empreendimento. Fica muito evidente, pois, que o fracasso do ``socialismo real" e o enfraquecimento das perspectivas socialistas no Primeiro Mundo, retiram, imediatamente, plausibilidade ao projeto socialista. Há toda uma vastíssima literatura, que não se pode resumir aqui, nem Sader finge ter a pretensão de fazê-lo, que explica o descentramento operado nas perspectivas socialistas no Primeiro Mundo. Entre elas está, para uma certa literatura, o fim das classes sociais e da luta de classes, e portanto o fim da possibilidade das transformações socialistas. Ora, esse tipo de literatura, que acusou o marxismo de depositar todas as suas esperanças no operariado como sujeito histórico dessa revolução, comete, no lado oposto, o mesmo erro. Isto é, como já não existe o operariado clássico, então a via das transformações está fechada para sempre.
Bobbio aponta cinco razões para que as definições de esquerda e direita continuem sendo válidas. Entre elas, Sader escolheu a oposição igualdade/desigualdade, citando Bobbio: ``A distinção entre direita e esquerda, para a qual o ideal da igualdade sempre foi a estrela polar pela qual ela sempre se orientou e continua a se orientar, é muito clara". Creio que um outro critério diferenciador da esquerda e direita, conforme Bobbio, é o da autodireção/heterodireção ou, em outras palavras, o da autonomia dos sujeitos versus a subordinação social. A esquerda, com todos os seus erros, com toda sua ``burrice", sempre esteve do lado da autonomia dos sujeitos, enquanto a direita, com toda sua ``inteligência", sempre esteve e permanece pregando e fazendo concretamente a subordinação de classes e de indivíduos. A questão central na última greve dos petroleiros era esta e não nenhum desabastecimento, como logo se comprovou. O governo FHC não admitia a pretensão dos petroleiros de influírem nos rumos da emenda constitucional sobre o monopólio estatal. Nos termos de Bobbio, trata-se do dilema autodireção/heterodireção.
Esses critérios de Bobbio ajudam a pensar o futuro do socialismo, identificado como o programa da esquerda. O socialismo não está fadado a desaparecer como projeto histórico simplesmente porque a classe operária pode já não ser o eixo central da sociabilidade. Precisamente porque ele é não apenas um projeto de igualdade, mas sobretudo um projeto de autonomia, a produção dos novos sujeitos, tão exemplificada nos movimentos de todas as minorias políticas, está mostrando a riqueza de um processo, cuja reivindicação de autonomia termina por colocar em pauta, também, simultaneamente, a questão da igualdade. O descentramento do movimento operário nem é assim tão radical, e assim mesmo ele forma parte de uma nova complexidade, a da construção de sujeitos plurais, cujos projetos se chocam contra as estruturas da injustiça, da heteronomia, da opressão, da desigualdade e da exploração do capitalismo.
Projetos dessa abrangência não tomam corpo da noite para o dia, e sua característica ``pós-moderna" -para aceitar o desafio da direita em seu próprio terreno-, sendo precisamente a da autonomia, não tem, não precisa e recusa um protótipo do que virá, ao estilo do programa socialista do passado; mas este foi o ponto a partir do qual a modernidade pôde ser proposta. Não é de espontaneísmo que está se falando, mas de autonomia. Devagar, que temos pressa. Rirá melhor quem zurrar...

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