São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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A experiência da derrota

MARCO AURÉLIO GARCIA
Rosa Luxemburg - Os Dilemas da Ação Revolucionária
Isabel Maria Loureiro Edunesp, 197 págs. R$ 22,00
Se é verdade que no coração de toda política revolucionária está a tentativa dramática de manter unido o que é e o que pode ser, cabe ao historiador da revolução restaurar o que foi e o que poderia ter sido.
``Rosa Luxemburg - Os Dilemas da Ação Revolucionária", de Isabel Loureiro, não é stricto sensu um livro de história, ainda que a autora revele grande familiaridade com a historiografia da Alemanha de fins do século passado e começo deste.
Trata-se, antes de tudo, de uma obra de filosofia política que se nutre de objetos históricos relevantes: a trajetória da social-democracia alemã e o papel nela desempenhado por Rosa Luxemburg, esta intelectual e militante revolucionária cujo vigor e originalidade da reflexão interpelam até hoje o pensamento político.
O fascínio que Luxemburg e seus textos exercem está diretamente ligado à história de um fracasso: o da revolução alemã. Esta derrota, cuja compreensão Isabel Loureiro considera fundamental para entender-se a origem do ``marxismo ocidental", pode ter, ao mesmo tempo, comprometido definitivamente as chances do socialismo no século 20, na medida em que a revolução alemã era vista pelos socialistas de todo o mundo -inclusive, e sobretudo, os russos- como a condição de possibilidade para o êxito da revolução mundial.
Pensar esta derrota significa, pois, refletir sobre como a história política do século 20 poderia ter sido, o que não se confunde com exercício especulativo, sendo antes uma tentativa de desentranhar de conjunturas históricas concretas as potencialidades nelas existentes.
Sem buscá-lo, o estudo de Loureiro ilumina assim, e de forma expressiva, o que se convencionou chamar hoje de ``crise do socialismo": não só o fim da URSS e dos regimes burocráticos do Leste europeu -ilustrado emblematicamente pela queda do muro de Berlim-, como a erosão do paradigma social-democrata, convertido às políticas econômicas neoliberais. Rosa, como nos mostra a autora, situa-se no centro da crise do socialismo do começo do século, aquela que deu origem à cisão entre comunistas e social-democratas.
Com mão segura, a autora nos restitui as distintas apropriações históricas e políticas das quais Rosa foi objeto: desde o liberalismo, que a utilizou contra o socialismo, até os comunistas ortodoxos, que trataram de anular a essência libertária e democrática de seu pensamento, transformando-a em um ícone do ``socialismo realmente existente".
Essas leituras da obra de Luxemburg não podem ser reduzidas a simples tergiversações. Elas se nutrem de uma ambiguidade que atravessa toda a sua obra, e que Isabel Loureiro busca entender, historicizando-a. Para tanto, ela utiliza como fio condutor de sua análise as relações entre teoria e prática política, o que encaminha para a discussão sobre as relações entre socialismo e concepção da história.
Como se sabe, esta questão se coloca pela primeira vez para Rosa Luxemburg quando de sua polêmica com Edouard Bernstein, em fins do século 19. Bernstein não só criticara o a priori socialista das formulações estratégicas da social-democracia, como, coerentemente, questionara a dialética histórica de Marx, na qual via uma escatologia.
A resposta de Rosa, em ``Reforma ou Revolução", texto entusiasticamente reivindicado pela ortodoxia social-democrata (e mais tarde comunista), é um modelo de catastrofismo político, na medida em que deduz as possibilidades da revolução da previsão teórica sobre o colapso do capitalismo.
Ainda que situada ``à esquerda" da maioria social-democrata, que ``pensava baixo" as conclusões que Bernstein formulava em voz alta, Luxemburg confundia-se com o SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha), compartilhando a convicção deste, segundo a qual o capitalismo seria corroído por suas próprias contradições.
Este fatalismo determinista, distinto do determinismo quietista da maior parte da social-democracia, vai ser superado pela própria Rosa a partir de um acontecimento histórico que teve um papel central na construção de seu pensamento político: a revolução russa de 1905 e o papel nela desempenhado pela greve de massas.
Mas Isabel detecta corretamente a persistência de uma flutuação no pensamento de Rosa. Em seus textos mais teóricos -``A Acumulação do Capital", por exemplo-, o socialismo aparece como decorrência lógica da crise inevitável do capitalismo. Já nos textos políticos, que procuram reconstituir e explicar situações históricas concretas -a revolução de 1905-, o socialismo é visto como criação das massas, construção histórica.
Esta tensão não desaparece nunca e a acompanha até sua trágica morte, em janeiro de 1919. O que o livro de Isabel consegue mostrar é o aparecer desta flutuação teórico-política em distintas conjunturas e como sobre ela incidem as exigências da prática política, da ação revolucionária, repercutindo na forma pela qual Rosa valoriza o papel das massas, do partido e da consciência de classe.
A questão da criatividade histórica é tematizada sugestivamente por Isabel Loureiro a partir da reconstituição de uma polêmica entre Marx e Lassalle sobre o papel dos indivíduos na história. Ela vai-se reproduzindo na trajetória da social-democracia alemã, na entusiástica análise da revolução de 1905, na crítica aos bolchevistas, que não exclui sua solidariedade com a experiência soviética, até chegar a dois momentos dramáticos: a guerra de 1914 e a revolução alemã de 18-19. A tensão em seu pensamento chega ao máximo.
Como explicar a adesão das massas -cuja ação criativa tanto exaltara- à loucura coletiva da grande guerra? Rosa não pode restringir-se a explicações, como as de Lênin, sobre a ``traição" das direções social-democratas, vendo-se obrigada a pensar mais profundamente o tema da integração da classe operária na sociedade capitalista e mergulhar mais intensamente naquilo que Marx havia chamado de ``miséria alemã": os desencontros desse país com a liberdade, a democracia e a revolução.
Esta problemática se agrava e assume contornos de tragédia no pós-guerra. Isabel Loureiro expressa bem o dilema de Rosa: ``Como é possível assegurar um futuro emancipado com um sujeito alienado? De que modo fazer os escravos desejarem a liberdade?".
A classe operária alemã, por seu turno, não entende nem aceita a cisão entre revolucionários e reformistas. Mesmo com seus partidários -os spartakistas-, a sintonia política de Luxemburg torna-se difícil. O radicalismo destes é agravado por seu isolamento e desorganização.
Nos dias que antecedem seu assassinato, Rosa reprova em privado a aventura spartakista, mas seus artigos no ``Rote Fahne" (``Bandeira Vermelha") vão em sentido inverso e incendeiam os corações e as mentes destes jovens operários que parecem estar dispostos a tomar os céus de assalto sem dar-se conta da relação de forças desfavorável.
Dominada por um sentimento de impotência e desesperança, Luxemburg vê a ação do partido restrita às funções do esclarecimento (``Aufklarer") e da agitação, perdendo o controle sobre a eficácia das ações das massas e das vanguardas.
Seguindo Lukács, Isabel Loureiro aponta para o fato de que a categoria de totalidade, que permitia que Rosa Luxemburg unisse teoria e prática, não lhe deixou espaço para escolhas individuais, acorrentando-a à história e à revolução. ``Deste ponto de vista", conclui, ``a política não é cálculo, talvez seja tragédia".
Rosa Luxemburg não deduziu sua concepção de política da ética ou da moral, mas o seu ``agir segundo os princípios, mesmo ao preço da própria vida", como, em certa medida ocorreu com Guevara, deu-lhe um ``pathos heróico (...) que explica por que Luxemburg permanece até hoje ponto de referência para a esquerda".
Sem sucumbir ao voyeurismo, tão frequente nestes tempos de pós-modernidade, Isabel Loureiro resgata, com uma sólida discussão histórica e teórica, esta dimensão subjetiva de Rosa Luxemburg, num livro que atrai pela relevância dos temas, inteligência do debate e contundência do estilo.
MARCO AURÉLIO GARCIA é professor do departamento de história da Universidade de Campinas

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