São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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O sentido da Renascença

LEON KOSSOVITCH
ESTUDOS DE ICONOLOGIA

Erwin Panofsky Tradução: Olinda Braga de Sousa Editorial Estampa, 237 págs. R$ 27,60
A segunda edição de ``Estudos de Iconologia" evidencia o interesse crescente do leitor de língua portuguesa pelos ensaios de Erwin Panofsky, que privilegiam a interpretação temática das obras. Esta coletânea, quando referida a outra, a não menos relevante ``Significado nas Artes Visuais", publicada em 1976 pela editora Perspectiva, efetua-se como núcleo que, divulgando uma das direções principais da investigação panofskiana, aprisiona o conjunto: outros escritos do autor, igualmente relevantes, ficam obscurecidos pela luz que a fortuna crítica lança sobre os iconológicos.
Assim, ``Idea" e ``Die Perspektive als `Symbolische Form"' (``A Perspectiva como `Forma Simbólica"') -para se ficar nos estudos que antecedem a mudança do autor para os Estados Unidos- ou ``Gothic Architecture and Scholasticism" (``Arquitetura Gótica e Pensamento Escolástico"), ``Early Netherlandish Painting" (``Pintura Primitiva dos Países Baixos"), ``Albrecht Drer" e, principalmente, ``Renaissance and Renascences in Western Art" (``Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental") -que se produzem após a fixação dele naquele país- constituem-se como obras que balizam os estudos que se estendem da biografia artística à reflexão histórica de longa duração, passando por doutrinas de arte e algumas tópicas suas.
Não obstante, pois, a demasia do enfoque iconológico, este não pode ser diminuído: no que concerne ao surgimento de uma história em ruptura com a feita no tempo, ``Estudos de Iconologia", de 1939, pode ser aproximado ao contributo marxiano de Anthony Blunt, em oposição à historiografia ora derivada da psicologia da ``Kunstwollen" (vontade de arte), ora do purovisibilismo de Wõlfflin, omitindo-se, aqui, a massa variada de histórias empiristas, idealistas, positivistas.
Não é exata, em decorrência, a afirmação de que a obra de Erwin Panofsky se limita ao Renascimento; embora o privilegie, ela se espraia pela arquitetura gótica, pela perspectiva greco-romana, pela pintura dos Países Baixos anterior à difusão das doutrinas italianas, que só os atingem com impacto no século 16. Todavia, no cerne mesmo da articulação conceitual panofskiana, o Renascimento, como o interpreta o autor, repercute: a erudição filia-se ao mesmo Renascimento e, assim, ao que Panofsky nele divisa como essencial, o humanismo; muito embora tal humanismo deva ser situado no século 19 e não no Renascimento, que o ignora, é ele que legitima a erudição que, nunca desgarrada, assinala a adequação do historiador ao objeto, o que também fazem Fritz Saxl ou Edgar Wind, revalorizadores do sentido, nas artes, do documental e monumental.
O humanismo impede a interpretação autoritária, de modo que, em cada reedição ou publicação de outro escrito, Panofsky faz balanço das críticas, acolhendo as pertinentes após discussão: exemplificam-no o admirável ``Caute" (Cuidado), com que acautela o leitor do reeditado ``Idea", ou a nota de ``Renaissance and Renascences", onde corrige, a partir de reparo alheio, equívoco matemático produzido em ``Die Perspektive". Não se trata de probidade genérica, exigível de intelectuais, mas da que o humanismo requer como constitutiva de seu discurso.
As idas e vindas por escritos latinos e gregos são inevitáveis no estudo de letras e artes, pelo menos nos que se produzem até o século 19. Assim, no ensaio de ``Estudos de Iconologia", que trata da história primitiva do homem como pintada em Piero di Cosimo, distinguindo o ``Genealogia Deorum" (``Genealogia dos Deuses"), de Boccacio, que do pintor é aproximado, Panofsky discute o texto do letrado cotejando-o tanto com escritos mitográficos quanto com autores latinos e gregos, Vitrúvio, Ovídio, Lucrécio, Plínio o Velho, Virgílio e seu comentador, Sérvio, assim como Diodoro de Sicília e Homero; a mitografia, que se estende do século 5 ao 14, e os escritos antigos abrem leque interpretativo, de que se beneficia a compreensão, não só de Boccacio, como, principalmente, de Piero di Cosimo.
Neste sentido, a iconologia não só estabelece o tema, como também o conteúdo da pintura, níveis do significado que se articulam com a forma, ou motivo; trata-se de três níveis do significado, como expostos em ``Estudos de Iconologia", que se hierarquizam em ordem ascendente: motivo, tema e conteúdo, hierarquizando-se, unificam-se no último, sem perder, como deseja Panofsky, em diferença que os especifica. Por isso, a forma não se reduz à representação de tema ou conteúdo, podendo ser considerada significado relevante: é o que explicita ``Gothic Architecture and Scholasticism", no qual Panofsky demonstra a homologia da ordem expositiva da ``Summa Theologiae" (Suma Teológica) e da construtiva da catedral gótica.
A irredutibilidade do motivo, que ``Estudos de Iconologia" não evidencia nos últimos cinco ensaios que o compõem, aclara-se, entretanto, no primeiro deles, em que o autor expõe uma de suas contribuições mais significativas como historiador da arte para o discernimento de inflexões relevantes da história: é a tese da incompatibilidade, entre os séculos 12 e 14, de temas clássicos e motivos clássicos. O descompasso de motivo e tema implica, decerto, a valorização dos dois, requerendo erudição dupla: tanto a figuração é considerada, quanto o é a mitografia, em que se distingue Alexander Neckham, fonte de Petrarca; a análise das duas vertentes, pondo em evidência a separação do mito e da figura, tem a unidade de ambas como implícito histórico: resumida a ``clássico", a antiguidade greco-romana refaz-se apenas no Renascimento, cuja unidade, no que concerne às vertentes, aparece como pálida renovação sob os carolíngios.
A diferença do antigo e do renascente é retomada por Panofsky em ``Die Perspektive", que, sem hierarquizar os dois períodos, distingue-os, não só com recurso à pintura remanescente, como também com consideração de escritos antigos de ordem vária. Outro implícito panofskiano, claríssimo tanto neste texto quanto em ``Idea", é a subjetivação de conceitos e preceitos, na qual está marcada a figura de Ernst Cassirer e da discussão dos kantianos do tempo: o ``Caute" (Cuidado) escrito em reedição de ``Idea" chama a atenção para o anacronismo do enfoque panofskiano no que concerne à exposição das doutrinas de arte do livro. Conquanto se atenue, a marca cassireriana não se apaga, pois o leitor de ``Estudos de Iconologia" topa com o simbólico na constituição do terceiro nível do significado, o conteúdo.
Mais, porém, do que a subjetivação, é o classicismo que determina, como implícito riegliano, o traçado geral da obra de Panofsky. Em que pesem as críticas produzidas no tempo mesmo de Riegl e Wickhoff à generalização de ``clássico", como se lê nos textos a um tempo luminosos e fantasiosos de Josef Strzygowski, sua imposição reforçou rigores que compartimentam os tempos e os lugares. Ainda que matize os períodos, Antiguidade, Idade Média, Renascimento etc, Panofsky os mantém como antes constituídos; trata-se de imaginário, cuja evidência está articulada à de ``clássico", redutor de inteligibilidade das muitas vias das artes, tanto nos tempos quanto nos lugares: o recorte ``arte ocidental" em ``Renaissance and Renascences" está no paradigma, pois abstrai as artes da área constantinopolitana que, entre os séculos 5 e 14, desempenha papel relevante, embora modalizado, no que concerne a esse ``Ocidente". A exclusão das artes de Constantinopla por um ideológico ``Ocidente" torna incompreensível a história artística italiana no período, precisamente onde o Renascimento eclode. Os implícitos de Panofsky são os da historiografia em geral e em nada diminuem sua contribuição para os estudos das artes -nos quais ele aflora e interpreta questões cruciais- e para os estudiosos que com a sua obra se formaram, ainda que distantes de seu moderno humanismo.
LÉON KOSSOVITCH é professor do departamento de filosofia da USP

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