São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cartas do jovem Freud

OSMYR FARIA GABBI JR.
AS CARTAS DE SIGMUND FREUD PARA EDUARD SILBERSTEIN

Diferente -para nos restringirmos a obras recentes- de ``The Complete Correspondence of Sigmund Freud and Ernest Jones" (Belknap Harvard, 1993) ou da correspondência entre Freud e Ferenczi (cujo primeiro volume apareceu em 1992), a publicação de ``As Cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein", pela Imago, seis anos após o seu aparecimento na Alemanha, não contribui, aparentemente, para a compreensão da teoria psicanalítica. Afinal, as 79 missivas estão distribuídas entre os anos 1871-1881, ou seja, foram escritas mesmo antes de Freud ter completado seus estudos universitários. A impressão é ainda mais forte quando constatamos que 80% do material está concentrado entre 1872 e 1876, sendo que 25% do total no ano de 1875, quando Freud tinha 20 anos.
O organizador, procura, no posfácio, justificar o interesse para os psicanalistas e para o público em geral desse pequeno epistolário. Em primeiro lugar, trata-se de saber quem foi Eduard Silberstein. Nesse particular, acreditamos que o próprio Freud seja a pessoa mais indicada para introduzi-lo. Em 7 de fevereiro de 1884, em carta enviada a Martha Bernays, sua futura mulher, ele nos oferece um quadro bastante elucidativo de seu amigo (``The Letters of Sigmund Freud"): ``Aprendemos espanhol juntos, tínhamos nossa mitologia privada e nomes secretos que emprestamos de algum diálogo do grande Cervantes. Uma vez, em nosso livro de espanhol elementar encontramos uma conversação humorística e filosófica entre dois cachorros que se encontravam deitados serenamente no chão de um hospital e nós nos apropriamos de seus nomes; tanto em missivas quanto em conversas, ele era conhecido como Berganza e eu como Cipião. Quantas vezes não escrevi: Querido Berganza! e assinei como Tu fidel Cipio, pero en el Hospital de Sevilla! Juntos fundamos uma estranha sociedade erudita, a `Academia Castellana' (AC), coligimos uma grande quantidade de material humorístico que ainda deve existir em algum lugar entre os meus papéis; partilhamos de nossas refeições frugais e nunca nos sentimos entediados na companhia do outro".
Há, no entanto, uma personagem que parece dominar as preocupações de Freud: a jovem Gisela Fluss, descrita posteriormente em ``Lembranças Encobridoras", publicada em 1899. Nesta obra, o já psicanalista Freud descreve uma recordação infantil de um homem de 38 anos: uma paixão -súbita e jamais revelada- vivida quando tinha 17 anos por uma jovem que acabara de conhecer. Mais tarde, ela se tornou totalmente indiferente para ele. É notório que se trata de material autobiográfico. Como Jones salientou anteriormente (``Sigmund Freud, Life and Work", vol. 1, pág. 36), o disfarce de Freud teria consistido em modificar a sua idade de 43 para 38 anos, e a da jovem de 17 para 16 anos. Fundamentalmente, para a vulgata psicanalítica, o episódio não teria passado de uma simples fantasia pontual, sem maiores sequelas (pág. 109). Contudo, graças às cartas para Silberstein, podemos reconstruir pelo menos parte do material diurno. Este -quando investigado- se reveste de todas as características de um mito originário, presente em determinadas interpretações de Freud.
Gisela, que Freud havia conhecido no verão de 1871, é citada pela primeira vez em um cartão postal de 30/1/1872: ``En conclusion no se la puede igualar a Ichth". Ichth, nome dado à adolescente, é uma abreviatura de Ichthyosaurus (ictiossauro) e deriva de um poema homônimo de von Scheffel, presente na edição das cartas. Gisela aparece diversas vezes na correspondência e é sempre tratada ora como objeto de desejo, ora como objeto de desejo abandonado. Em 1/10/1875, Freud escreve um poema satírico, em que procura renunciar a este amor secreto. O motivo fora a descoberta de que Ichth teria contraído matrimônio. Contudo ela, que contava na época 16 anos, só se casaria em 1881. Tudo não havia passado de uma pura construção imaginativa. Esta é ainda mais enigmática quando se lê o esboço do poema e se constata que estamos diante de alguém desesperado e que pensou seriamente em suicídio. A comparação entre o bosquejo e o poema enviado a Silberstein revela, além disso, a enorme capacidade de Freud para sufocar sua paixão e torná-la anódina.
Assim, podemos concluir que não foi apenas a idade que foi adulterada em ``Lembranças Encobridoras". O amor sentido por Freud não foi nem pontual nem terminou de forma tão abrupta. Ao contrário, a imagem de Gisela reaparece em diversos de seus casos clínicos. Por exemplo, em ``O Homem dos Ratos", no registro original do caso, o paciente referiu-se a uma Gisela Fluss. Freud colocou três exclamações ao lado do nome e ofereceu nas notas da sessão seguinte, do dia 21 de novembro, uma explicação para o nome Giselamen. Ele seria formado de Gisela e de Semen (sêmen). Em outro caso, ``O Homem dos Lobos", Freud relaciona a cor amarela, elemento dominante em ``Lembranças" -o detalhe que marcara a atração pela jovem fora a cor amarela de seu vestido-, com um episódio da vida do paciente, em que ele se apaixonara subitamente por uma camponesa sem ter visto a sua face. Creio que não seria inútil um trabalho que visasse encontrar nas interpretações de Freud vínculos entre o amarelo e amores repentinos. Talvez estejamos diante de uma das matrizes interpretativas da psicanálise.
Outro tema, igualmente saliente na correspondência, é a filosofia. Ao contrário de suas declarações posteriores, mas em consonância com o conteúdo de algumas de suas cartas para Fliess, Freud manifestou vivo interesse pela área. Em 17/7/73, avisa que frequentará, no seu primeiro ano de universidade, a faculdade de filosofia. Um mês mais tarde, observa que: ``É verdade que não me entreguei à filosofia, como tu, por desespero, mas, em compensação, por outros vícios, que vão me fazer perder a ventura de minha alma" (págs. 48-49). Também tinha a intenção de fazer o doutorado tanto em medicina como em filosofia. No entanto, o projeto teve de ser abandonado. Seu aprendizado de filosofia limitou-se a leituras realizadas com amigos, como Braun e em especial Paneth, com quem estuda Feuerbach -entre todos os filósofos, o que ele mais respeita e admira (7/3/75)-, e, na universidade, aos cursos de Brentano.
Talvez, sob influência de Feuerbach, ele tenha escrito um pequeno comentário sobre a relação entre o estômago e a religião, onde encontramos algumas passagens que trazem a marca da sua ironia como: ``Mas hoje a respiração difícil de dois peixes e um ganso, lá fora, na cozinha, me diz que estamos às vésperas do Dia do Perdão", ou: ``Assim, pois, comemos nos dias de sol e nos feriados, mas com uma diferença: enquanto os piedosos acham que praticaram uma boa ação, nós, experimentados filhos deste mundo, estamos conscientes de que comemos um bom prato" (págs. 82-83).
Dada a existência de uma aguda controvérsia em relação ao solo filosófico em que a psicanálise germinou, não é despido de interesse esquadrinhar o conteúdo dos cursos de Brentano. Em 1874, Freud frequentava, de acordo com suas próprias indicações, preleções sobre questões metafísicas selecionadas -que, dada uma série de outros comentários, estavam provavelmente relacionadas com a existência de Deus- e sobre o princípio da utilidade de Mill. Em 1875, ao lado de leituras sobre filosofia, seguia também com Brentano, duas vezes por semana, um curso de lógica. No segundo semestre do mesmo ano, aulas de lógica e de psicologia. Sobre os outros anos, as cartas nada revelam. Entretanto, há uma passagem primorosa, em que Freud, ao descrever as diversas opiniões dadas pelo próprio Brentano sobre os diversos filósofos (págs. 122-123), ressalta: ``...confessou-se francamente partidário da escola empírica, que transfere os métodos das ciências naturais à filosofia e principalmente à psicologia (de fato, esta é a principal utilidade de sua filosofia e a única que, para mim, a torna tolerável").
A crença de Freud no naturalismo faz com que se aproxime de uma certa filosofia que merece observações, como a seguinte: ``Realmente, há muita podridão neste `cárcere' chamado Terra, o que se poderia melhorar através de instituições humanas voltadas para a educação, a distribuição dos bens, a forma de `Struggle For Existence' etc. São esses os pensamentos de Mill, a cujo conhecimento, suponho e espero, deverei em breve me entregar com afinco" (pág. 117). Tampouco seria estéril um trabalho que procurasse examinar com o devido rigor o decantado e às vezes exorcizado empirismo de Freud.

Texto Anterior: Cérebro, emoção e razão
Próximo Texto: Cenas de uma fábrica
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.