São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Cenas de uma fábrica

CIBELE SALIBA RIZEK

Trabalhando Para Ford - Trabalhadores e Sindicalistas na Indústria Automobilística
Huw Beynon Tradução: Laura Teixeira Motta Paz e Terra, 532 págs. R$ 29,00
Este livro, já clássico para a literatura sobre o trabalho, foi elaborado para que leitores não familiarizados com uma terminologia e uma narrativa acadêmicas possam compartilhar o que foi e ainda é, em muitos casos, a experiência de viver ``trabalhando para Ford": ``Nunca fui empregado da Ford. Relatei a história das experiências de outras pessoas, das quais algumas eu compartilhei, como alguém de fora. Alguém de fora que foi aceito lá dentro. Estas páginas são o produto dessa hesitante mutualidade" (pág. 11).
A elaboração do livro assenta-se em cinco anos de investigação, cobrindo toda a história da presença do grupo Ford na Grã-Bretanha. No centro da trama, estão os ``shop stewards", representantes operários, cujas falas e enredos se mesclam à narrativa de Beynon, o que foi, para a sociologia inglesa dos anos 70, motivo de estranhamento e de reações adversas. As falas dos trabalhadores apareceram, então, aos olhos dos críticos, como ``tagarelice da fábrica". Onde estariam os dados que realmente importam? No ``instrumental estatístico de sua área", substituído por ``misteriosas citações diretas introduzidas a torto e a direito por seus próprios comentários subjetivos"? ("Liverpool Post", 31 de maio de 1973, apud Beynon, pág. 14).
Se hoje não se pode considerar propriamente uma novidade este tipo de estruturação de pesquisa, em especial no que se refere aos estudos de situações fabris, não é raro que o rosto de trabalhadores ou o desenho de suas práticas e discursos desapareçam sob o pesado lastro dos números, das categorias, de palavras que são, em si mesmas, encenação de uma experiência. Qual a face dessa gente, transformada em ``dados objetivos"? Como identificam a si mesmos e as situações que vivem? Importa, e a quem, reconstituir a dramaturgia vivida por estes homens de carne e osso?
Trabalhadores das várias unidades da Ford inglesa ajudam a dar visibilidade para o que vivem nas fábricas. Temas muito familiares às várias etnologias fabris, produzidas pelos estudos brasileiros, ou às várias situações vividas nos quatro cantos do mundo, vão tomando corpo na configuração do que se pode denominar, apesar das muitas especificidades, como um conjunto de experiências de classe.
Na sucessão de temas, que a narrativa vai apresentando, várias das questões relativas ao embate e ao conflito fabril e sindical vão sendo sugeridas: a relação entre representantes e representados nos chãos de fábrica, a relação entre organização e encaminhamento das questões concretas nos locais de trabalho e as instâncias sindicais e as relações entre formas de organização dos trabalhadores diante das gerências e direções das fábricas. A experiência dos que trabalhavam para Ford atinge, algumas vezes, dimensões inusitadas. Casos, acontecimentos, impressões configuram um panorama mais afeito às reiterações de uma experiência de classe do que às clivagens imaginárias e reais entre o trabalho no Primeiro Mundo, especialmente da classe trabalhadora ``mais antiga do mundo" e as experiências de trabalho no Brasil. O relato que se reproduz a seguir, considerado ``particularmente desagradável" pela direção da empresa na Inglaterra, merece destaque:
``Estávamos no vestiário antes de o turno começar, e ele caiu com uma dor no peito. Ficou com uma cor horrível, mas depois achou que estava bem. Ele desceu a escada e foi para a oficina, caminhou até a linha e caiu de novo. (...) Corremos todos para perto dele, e a sirene tocou. A linha começou a se mover. O contramestre veio gritando `vão para o trabalho... vão para a linha'. E lá ficamos nós, botando coisas nos carros e ele ali caído. Deve ter ficado caído assim uns dez minutos... morto. Na nossa frente... Homens e máquinas. Um conflito de valores em uma fábrica de automóveis..." (pág. 107).
Em outros momentos, o que é raro neste tipo de literatura, Beynon faz sorrir. Contando casos e descrevendo seus protagonistas, os relatos vão adquirindo a forma de pequenos contos, de episódios fluentes em que Mick ou Eddie vão-se tornando visíveis, ganhando contornos que permitem perceber que, além de trabalhadores da Ford, tinham passado, tinham vida, tinham rosto.
Apesar de haver colocado em questão, em trabalhos posteriores, a destruição destas experiências e da solidariedade de classe na Inglaterra, ``Trabalhando Para Ford" não tem, para o público brasileiro, um sentido apenas histórico. Apontando questões que, apesar das especificidades, contêm dimensões transversais às experiências dos trabalhadores na Inglaterra e no Brasil, o livro questiona algumas das idealizações a respeito do trabalho nas linhas de montagem características da produção em massa, no Primeiro Mundo.
Beynon elabora uma análise de alguns dos mais importantes movimentos grevistas da Ford, na Inglaterra. A gênese das greves, a maneira como se forjaram as lideranças, a constituição da militância de alguns dos ``shop stewards", as redes de sociabilidade dentro e fora da fábrica e as questões que estes trabalhadores se colocavam a respeito do futuro do trabalho, as diferenças e nuances entre as formas de luta, entre os representantes operários e os dirigentes sindicais, os meandros das mesas de negociação, todos estes elementos, na multiplicidade de seus aspectos, vão constituindo o campo dos conflitos de classe em uma sociedade que, reconhecidamente, conquistou espaços democráticos estáveis. Chama a atenção, em meio à narrativa da greve pela paridade, a maneira como as lutas dos trabalhadores eram vistas de fora, do ângulo das ``classes médias", o que acaba por configurar, em especial nos momentos de conflito, algumas representações que são tanto mais familiares quanto mais se recorda a batalha real e simbólica que foi travada recentemente, no Brasil, por ocasião da greve dos petroleiros.
Os capítulos finais de ``Trabalhando para Ford" indicam novas transformações, já em curso nos anos 70 e 80: a globalização, que frequentemente recebe a denominação de pós-fordismo ou crise do fordismo, já se fazia sentir claramente dentro das oficinas. As novas posturas gerenciais, as tentativas de cooptação dos sindicatos, o ``carro mundial" cuja invenção a Ford reivindica, a formação de ``máquinas de negociação", em especial o Comitê de Relações Trabalhistas da Ford, as ``torrentes de estatísticas" que comparavam índices de produtividade, as inovações técnicas de base microeletrônica, foram constituindo as novas determinações do trabalho. Aprendizado e perplexidade, mudanças nas estratégias patronais e operárias, novos patamares de acordos e de negociação foram construindo, ao longo do capítulo sobre os anos 80, anexado à segunda edição, a idéia de um tempo cada vez mais curto, de mudanças cada vez mais rápidas.
Pela análise das situações fabris e extrafabris, nos anos 70 e 80, tornaram-se visíveis alguns dos princípios de organização e estruturação social, que podem dar a dimensão de um conjunto de transformações sobre as clivagens de classe e sobre a estruturação da sociedade contemporânea, cujos rumos, inconclusos, permanecem como objeto de interrogação.

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