São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Solilóquio da infância

GILDA DE MELLO E SOUZA
ESPELHO DO PRÍNCIPE - FICÇÕES DA MEMÓRIA

Alberto da Costa e Silva Nova Fronteira, 189 págs. R$ 15,00
Aquele que tem o privilégio de receber os livros de Alberto da Costa e Silva autografados pode, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, imaginar o escritor pela dedicatória. Para tanto não precisa deter-se nas palavras sempre cordiais da oferta; basta atentar para a cuidadosa organização gráfica, o equilíbrio com que dispõe na página branca, um pouco descentrado, o pequeno retângulo preenchido pela caligrafia nítida, o espaço alongado, onde escreve em seguida o nome em caracteres maiores e por extenso, em baixo, no canto direito, o endereço do momento. Esta ordem já antecipa o texto que nos envia, revelando um temperamento sensível não só ao recurso infinito das palavras como à visibilidade imperiosa das coisas.
Desde as primeiras páginas ``Espelho do Príncipe" funde com segurança as duas linhas mestras do entrecho: uma ostensiva, descrevendo o dia-a-dia de uma família de classe média urbana do Ceará, outra pungente e recatada, presa ao perfil de um menino frágil e sensível, muito apegado a um pai inválido. No casarão em que vivem se alojam a avó viúva, a filha ainda moça, o marido 29 anos mais velho que ela e três filhos crianças. O menino é o maiorzinho. No início da narrativa, a casa hospitaleira, misto de ``pequeno hotel sem requinte" e ``pensionato de estudantes ligados por laços de família", está a serviço da parentela extensíssima: ``Cada mês chegava de Sobral, de Granja, de Camocim, de Viçosa, de Massapê e de outros pontos da praia e do sertão um novo candidato a seu canto de rede e ao café da manhã, almoço, lanche, janta e ceia, pagando nada ou menos que o estranho que, para abrir a vaga, se despedia".
A habitação menor para onde logo mais a família se muda é menos concorrida, mas permanece movimentada, pois àquela altura, em Fortaleza, era o comércio que, toda manhã, batia à porta da casa. Assistimos assim à longa procissão dos fornecedores: o leiteiro e seu ajudante, os meninos carvoeiros e o seu patrão, os lindos jumentos das floristas -``cabeçada e focinheira vinham cobertas de flores e flores escondiam o couro do peitoral, da cilha e da retranca das cangalhas"-, os vendedores de aves, os funileiros, os peixeiros, os compradores de garrafas e de jornais velhos, os vendedores de frutas. ``Com o meio-dia e o mormaço do início da tarde vinham os sorveteiros". E sempre batendo à porta ou já incorporados à faina diária da casa, os pedintes, os agregados, as órfãs adolescentes que os pais, não podendo manter, davam de graça aos de mais posse, ``a fim de serem criadas para todo o serviço".
O autor registra e enumera com minúcias de antropólogo, mas comenta pouco, deixando que a iconografia sugerida pela descrição vá, por si só, caracterizando os ambientes: no mocambo, ``o pote e as quartinhas d'água, a arca, as panelas de barro e o fogareiro, o ferro a carvão e a mesa de passar roupa"; na casa do menino, o que restou da pompa antiga e veio dentro dos baús, junto com os móveis da avó: ``um leque de plumas de avestruz, sombrinhas de seda, bengalas, a casaca e a cartola do avô, um binóculo e uma caixa grande, negra e quadrada", que aberta revelou uma vitrola. Objetos fora de uso, desemparceirados, que se harmonizam bem com os personagens sem nome da narrativa.
Pois, ao contrário de Pedro Nava, que, desde o início de suas memórias, instala os parentes na frondosa árvore genealógica da estirpe, Costa e Silva prefere abolir nomes e sobrenomes, para que a identidade de cada um ressurja essencial e despojada, na lembrança do menino: o pai, a mãe, a avó, a tia, a irmã, a prima. E se às vezes a identificação se torna precisa, descritiva, é para lembrar ao leitor que, naquele momento, o passado está sendo evocado pela memória concreta da infância: ``a jovem prima solteira", ``a outra prima, filha daquela senhora que gastava os dias a fazer e provar licores", ``o tio padre, o mais bonito da família", ``o tio-avô casado com uma inglesa", ``o genro do tio", ``a outra tia que era toda linda, de cabelos muito negros", ``a tia que mandou matar o marido", ``o ex-marido", ``o marido degolado".
São esses pequenos toques imperceptíveis que vão impondo uma visão nova das coisas, da sensibilidade, da relação com as pessoas, do escoar do tempo. Por exemplo: o que é um acontecimento para o menino? Não é a guerra, que penetrou na casa pelo rádio, está nas conversas da família e já anda pela rua, na farda dos soldados americanos. No ``entrançado da lembrança", o acontecimento é a miudeza, o insignificante, a perda do brinquedo de madeira, com o cavaleiro dando cabriolas sobre a montaria; é a moça rindo muito, com duas pontas de saia amarradas por entre as pernas, enquanto o menino está ``atento até a ponta dos dedos, e a sentir que a pele mal o continha dentro do corpo"; é todos os sábados a morte sangrenta da galinha; é sobretudo a enxaqueca, o monstro de tocaia, ``a dor que o afastava do mundo", e que espera o leitor nas primeiras linhas da narrativa:
``O menino sentia o sol na pálpebra. Doía-lhe a cabeça. Era como se uma colher lhe escavasse a órbita espicaçada pela luz, para trazer, na concha, o olho. Tonto, sem poder fitar o muro do terraço, em cujo cinza se multiplicavam espinhos de cristal, voltou a testa para o céu e pressentiu-se à beira de um poço, a cair ao contrário. Pôs as mãos no rosto -e cheiravam mal. O trino do canário, o arrastar do sapato da ama ali sentada, a voz da vizinha a falar da janela e tudo o que soasse, ainda que um sussurro, espancava-lhe as orelhas, trovejava dentro dele. Sozinho na aflição e pequenino -tinha entre dois e três anos de idade-, foi para junto da moça, pôs a cabeça em seus joelhos e deixou-se chorar".
Há várias maneiras de ler um livro cheio de tantos desdobramentos, ressonâncias, achados expressivos -tão cheio de arte-, como é ``O Espelho do Príncipe". Eu prefiro tomá-lo como um ritual de passagem, uma travessia da infância à idade adulta, em que o menino, preso ainda ao ``simples da beleza" que partilhara em silêncio com o pai, resiste a ingressar no mundo dos grandes, fechando os olhos, tapando os ouvidos, deixando-se aprisionar na casa desabitada. E que, finda a luta, já adolescente, pede perdão de existir, de ter cedido ``cheio de horror, agonia e deleite" à madura ``crueldade da beleza".

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