São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Esconderijo como método

CAMILLO PENNA
A resenha de Berta Waldman sobre ``Clarice Lispector - Uma Vida Que Se Conta", de Nádia Gottlib, publicada no Jornal de Resenhas (1º/5/95), carece da generosidade de seu objeto. Berta Waldmam se engana quando diz que há paráfrases demais. Essa foi a saída encontrada por Nádia para restabelecer o trânsito entre texto e vida que contar a vida de Clarice suscita. ``Uma Vida Que Se Conta" recoloca no título este desenrolar da inerência que liga o pólo da vida ao contar, distinguindo-os, mas juntando-os como processo único pelo reflexivo ``se".
Se a vida ``se" conta, o contar-se é conclusão necessária de uma articulação interna à própria vida que, por necessidade inelutável, tem que se fazer escrita. Se na biografia falta a explicitação abrangente do nexo entre Clarice e seu contexto intelectual, se tudo parece se resumir a pequenos encontros fortuitos com amigos, é porque Nádia foi aqui fiel a este princípio da ``inerência", quem sabe a chave do processo da escrita-vida Clarice. Identificação excessiva com a biografada? Não creio. Escolha, sim, de um método imanente que recusa a produção de uma metáfora mais abrangente da obra, porque esconde a metáfora, espalhando-a sistematicamente, tornando a crítica quase imperceptível, para não forçar a mão e, quem sabe, interessar um leitor incauto.
As supostas paráfrases de Nádia são, na verdade, pequenas leituras esboçadas nas dobradiças do recontar as estórias. Por aí, delineia-se em filigrana uma questão do ``espelhamento", do ``desdobramento", a partir do qual uma ironia clariciana viria a deslocar a questão da identidade, numa reversibilidade em outro do mesmo e do mesmo em outro. Fala pouco, quase quieta, mas deixa escapar certos comentários, caldo extraído de fatos e textos: há em Clarice um sistema da perda feminina, que se negocia em eventual ganho: a arte da sua escrita constitui-se nesse benefício.
Por que esta economia? Berta Waldmam mais uma vez se engana: é na imitação, na identificação com o perder-se da biografada, que Nádia Gottlib se esconde enquanto crítica, convertendo o esconderijo em método. Ganho na perda, claricianamente. Acho este gesto generoso, respondendo a um desejo de neutralidade, de escrever uma biografia mais lisa e menos técnica, escondendo-lhe as rugas críticas numa ou noutra dobra, para deixar aparecer mais claro o texto da vida. Interromper um fato com um conto, ou vice-versa, pode ser chato para os que já conhecem as estórias, mas, quem sabe, para os outros, não; de qualquer maneira, a junta entre um e outro permanece sempre nítida, sutil, explícita; a vida não explica a obra, nem a obra a vida.
Esta quase dissolução do aparato biográfico lembra uma outra, essencial ao percurso de Clarice, e avesso da crítica que tradicionalmente veste excessivamente o texto clariciano. Por que a crítica se rende diante de Clarice e volta incansável a sitiar-lhe os muros? Por que tudo isso diz muito e muito pouco, diz demais? Porque a crítica não tem a capacidade de perder-se e de desnudar-se, que é o movimento intrínseco de sua escrita. Talvez Lúcio Cardoso tenha sido quem chegou mais perto do coração de seu sítio, ao apontar-lhe o movimento de gradual dissolução. Em Clarice, não há personagens, dizia, há ``máquinas de sentir". A própria Clarice falara-lhe em carta do perigo de sufocar seus personagens com puras sensações, transformando-os em ``arrolamento", lista de sentimentos.
Ficam sempre perguntas: escrever não é fácil para Clarice. Mas não é por pouca facilidade de forma. Nos contos dos anos 50 especialmente ressalta-se a economia da forma, o controle mais que perfeito do meio. No entanto, a dissolução interna da forma, motor mesmo da invenção em Clarice, encontra eco na sistemática interferência externa, provocada por uma atividade jornalística diária que não lhe agrada, a que é forçada por necessidade financeira e que acaba radicalizando essa dissolução no final dos anos 60. Processo ao mesmo tempo interno e externo, a produção se esfacela, a textura se esgarça, e ficam os registros das frases ``recebidas", que a narradora não consegue mais costurar. A forma, no final, falta.
Há duas bifurcações nesta vida que é escrita que imprimiram nova curva ao processo, mantendo-se, estranhamente fiel ao desígnio inicial da dissolução. A primeira foi ser mãe e depois a necessidade de trabalhar em jornal a partir dos anos 60. Apesar de ter trabalhado antes, e em diversos momentos em jornal, a produção de crônicas semanais assinadas para o ``Jornal do Brasil", afeta-a de uma maneira profunda. Estes, os dois pontos em que acontecimentos ``externos" vieram a alterar o curso da escrita.
Ambos, no entanto, vincando mais fundo o caminho dessa dispersão que é sua regra básica. Nestas duas quebras há suprema fidelidade ao processo interno e, no entanto, já acaso, fatalidade fortuita de uma vida.
JOÃO CAMILLO PENNA é professor na Universidade de Washington (EUA)

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