São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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O século da barbárie

MICHAEL HALL

A Era dos Extremos - O Breve Século 20 Eric Hobsbawm Tradução: Marcos Santarrita Companhia das Letras R$ 34,50
Não há historiador como Eric Hobsbawm. A excepcional amplitude de seus interesses e conhecimentos, a elegância das formulações e a precisão e simpatia de sua linguagem encantam mesmo leitores que nem sempre concordam com todos os seus argumentos. Hobsbawm é sobretudo surpreendente: flexível e original quando se espera ortodoxia, cortante em circunstâncias que parecem induzir complacência e sempre capaz de aliviar um texto complicado com fina ironia e uma anedota pertinente. Só Hobsbawm para mencionar, numa nota de rodapé, que entre os fugitivos de Budapest, em 1919, em consequência da derrota do breve governo comunista de Bela Kun, estavam o futuro magnata do cinema Sir Alexander Korda e Bela Lugosi, mais conhecido alguns anos depois, em Hollywood, como o astro de ``Drácula". Ou observar, de passagem, que o senso político do júri que escolhe o Prêmio Nobel de literatura é geralmente mais interessante que seu julgamento literário.
A erudição não apenas ilumina e impressiona; às vezes, intimida. Lembro-me da primeira vez em que vi Hobsbawm em ação, num congresso em Campinas, em 1975, respondendo às críticas vindas de um público menos convencido que ele da genialidade dos partidos leninistas. O assunto era os movimentos que ele chama de ``pré-políticos" e, a certa altura, deu uma resposta invocando vários exemplos pertinentes da história da Bulgária. O momento de perplexidade foi aliviado um pouco para mim, por uma colega que cochichou: ``Já imaginou como deve ser Hobsbawm em Sofia, calando a boca dos búlgaros com referências à historiografia brasileira?"
O presente livro mostra o autor, aos 77 anos, em excepcional forma. Após três volumes sobre o ``longo século 19", 1789-1914, vem este, dedicado ao ``curto século 20", 1914-1991. Não é uma história narrativa. Os acontecimentos políticos aparecem pouco e, embora escrito para um público não especializado, o livro está longe de ser um manual. Pressupõe uma certa familiaridade com a história do período. Entretanto, Hobsbawm alimenta poucas ilusões à respeito da preparação dos universitários atuais. Cita o caso de um ``inteligente estudante norte-americano" que perguntou se a expressão ``Segunda Guerra Mundial" queria dizer que teria havido uma Primeira. Considera um dos fenômenos mais característicos e sinistros deste final de século a ``destruição do passado" ou, mais precisamente, a destruição de mecanismos sociais que ligam nossas experiências contemporâneas e as das gerações anteriores. Os jovens crescem, segundo o autor, num tipo de presente permanente, sem nenhuma relação orgânica com o passado público de seu tempo. Daí a importância da tarefa do historiador e a escolha do tipo de livro que escreveu.
Hobsbawm propõe entender e explicar por que as coisas deram no que deram. O livro é, no fundo, uma série de ensaios amplos e sagazes sobre as grandes tendências econômicas, sociais e políticas que caracterizam o século. Está organizado em três partes: a Era da Catástrofe, entre 1914 e 1945, marcada pelas duas grandes guerras, as crises econômicas, a Revolução Russa e o desastre que foi o fascismo; a Idade de Ouro, entre 1945 e 1973, de inesperada prosperidade capitalista, profundas mudanças sociais e a estabilidade política da Guerra Fria; e, finalmente, as crises das duas últimas décadas, de relativa estagnação econômica e do colapso do ``socialismo realmente existente", com consequências ainda imprevisíveis. Como nos três volumes anteriores, as artes e ciências recebem um tratamento amplo (pauladas, neste volume, no pós-modernismo). O mundo não se resume à Europa e aos Estados Unidos, e algumas das melhores páginas tratam da Índia, África e América Latina.
É difícil, numa resenha, indicar a riqueza do livro sem fazer o autor parecer reducionista. Quase não há página sem alguma percepção inesperada ou formulação feliz. Por exemplo, sobre a tentativa do antigo establishment soviético de retomar o poder em Moscou em 1991: ``Um golpe simbólico derrotado por uma resistência simbólica". Ou, com referência aos efeitos da onda revolucionária que se seguiu à Primeira Guerra Mundial: ``Nenhum velho governo ficou de pé entre a fronteira da França e o Mar do Japão". Ou Stálin parecendo ``mais um personagem das `Vidas dos Césares' de Suetônio que da política moderna".
Em alguns casos, o fascínio vem da inclusão de curiosos detalhes culturais para ilustrar temas mais amplos. Por exemplo, a estrutura dos romances policiais clássicos como metáfora da ordem social ameaçada, mas salva pela razão, na forma do detetive, geralmente particular. Ou o significado da crença em OVNIs como manifestação do medo e desconfiança sentidos por muitos em relação à ciência. (Inclusive os extraterrestres atentos às vicissitudes da Guerra Fria mostraram clara preferência pelos territórios anglo-saxões para suas visitas).
Com referência às questões econômicas e políticas centrais, Hobsbawm é igualmente feliz. Seu tratamento da história da União Soviética é especialmente brilhante, começando com sua constatação de que a experiência soviética de uma economia altamente centralizada, sem mecanismos eficazes para determinação de preços, não foi planejada como alternativa global ao capitalismo. Surgiu como uma série de respostas à situação específica de um país enorme, ameaçado e espetacularmente atrasado, numa conjuntura particular e irreproduzível. O autor lembra, também, que os resultados não foram desprezíveis. Afinal, entre outras coisas, a URSS derrotou a Alemanha, algo que a Rússia czarista notoriamente não conseguiu.
Não é um livro que vá agradar aos que Hobsbawm chama de teólogos do neoliberalismo. É implacável ao descrever os fracassos do thatcherismo na Inglaterra e os efeitos desastrosos da ortodoxia do mercado irrestrito nos países do antigo bloco soviético. Mobiliza argumentos históricos e lógicos para mostrar as consequências calamitosas do enfraquecimento do Estado. Duvido que a acusação de ``esquerda burra" comova Hobsbawm a esta altura.
Nas conclusões, o autor primeiro desarma os leitores, lembrando a ruindade excepcional das tentativas de prever a direção dos acontecimentos, nos últimos 30 ou 40 anos, para, em seguida, esboçar suas preocupações sobre o futuro. Além das crises ecológicas e demográficas, identifica a ausência de qualquer sistema ou estrutura para manter um mínimo de ordem internacional. Inclusive ordem econômica: recorda que a mais grave ameaça ao sistema financeiro internacional, desde 1929, foi contornada por pouco, no começo dos anos 80, quando os grandes devedores -Argentina, México e Brasil- foram à bancarrota em sequência e não conjuntamente. Assinala o crescimento dos fundamentalismos com a frase de Karl Kraus sobre a psicanálise: ``A doença da qual pretende ser a cura". Considera o crescimento das desigualdades e do desemprego permanente entre os problemas mais graves e sem solução à vista. Neste item entra o Brasil, não exatamente como o país do futuro, mas ``um monumento à negligência social", perdendo feio para o Sri Lanka (que tem 1/6 do PNB per capita) em vários indicadores sociais, como mortalidade infantil e alfabetização, porque o Estado, em Sri Lanka, empenhou-se na redução das desigualdades.
Em geral, o tom do livro é sombrio e, às vezes, melancólico. Seria difícil imaginar uma pessoa séria escrevendo de maneira muito diferente sobre a crescente barbárie do século.

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