São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Um aluno fora de série

JORGE ALMEIDA
APONTAMENTOS DE APRENDIZ

Pierre Boulez Tradução: Stella Moutinho, Caio Pagano e Lídia Bazarian Perspectiva, 338 págs. R$ 39,00
No prefácio ao ``Tratado de Harmonia" (1911), quando Schoenberg afirmou que um professor ``não deve se mostrar como o infalível, que tudo sabe e nunca erra, mas como o incansável, que sempre procura e, às vezes, acha", não poderia imaginar que, anos mais tarde, um de seus seguidores fosse criticar os eventuais ``erros" da obra do mestre e apontar sem hesitação os novos caminhos que a música deveria seguir. É isto que fez Pierre Boulez, com uma segurança que só a juventude permite, nos textos que publicou entre 1948 e 1958, reunidos posteriormente em ``Apontamentos de Aprendiz".
O título já soa como um pedido de desculpas, pois o tom geral do livro é o de um aluno brilhante e rebelde, que se permite julgar impiedosamente seus mestres e analisar as maiores obras da geração anterior (das mais criativas da história da música) como meras preparações para o surgimento de obras mais complexas e bem resolvidas.
``Schoenberg está morto", proclama Boulez no título de um dos ensaios mais importantes do livro. E o parricídio era, sem dúvida, necessário: nenhuma música poderia surgir, sob os escombros do pós-guerra, sem dar conta das ruínas e monumentos deixados pela destruição do sistema tonal. Para Boulez, as obras de Schoenberg e seus alunos, e também as de Debussy e Stravinsky, estavam demasiadamente marcadas pelo combate à tradição do século 19. Seguir os seus passos sem questionar os novos problemas da música seria assumir o academicismo e o comodismo, mesmo sob o nome de ``vanguarda". Diante desta questão crucial, Boulez optou por se colocar na posição de mestre e assumir a liderança da nova geração: ``Como evitar a monotonia esgotante dessas produções abstratas que pesam sobre a pintura e a música em nossos dias? Falta de personalidade? Certamente".
Mas a nova personalidade não poderia ser buscada nem em soluções neoclássicas, que pregavam o retorno a um passado já irremediavelmente perdido, nem em um dodecafonismo acadêmico que se limitava simplesmente a aplicar como receita o princípio serial desenvolvido por Schoenberg. O esforço de sua geração deveria se concentrar, a partir do caminho serial já aberto pela escola de Viena, na busca de um novo princípio de organização para uma música que se abria a horizontes ainda pouco explorados: a superação do sistema temperado, as possibilidades sonoras da música concreta e eletrônica, o diálogo com o Oriente e a introdução do acaso como elemento constituinte da organização formal.
A qualidade das obras produzidas na época permitiu ao jovem compositor, em 1954, declarar com confiança: ``Parece que a geração atual já pode despedir-se de seus predecessores: conseguiu se definir de modo suficientemente preciso e explícito para não mais aceitar apadrinhamentos, para não mais sofrer obsessões". O rompimento com o passado era a cristalização de uma antiga tendência da história da música: o desejo da completa integração e racionalização de todos os elementos empregados na composição da obra. Para isso, uma nova idéia de forma deveria acompanhar a criação de um substituto para o sistema tonal. A solução para esta nova forma remete ao que Boulez denomina ``a palavra de nossa época": estrutura. A obra deveria romper com a compartimentalização da música em seções ou planos e garantir a unidade necessária pela serialização de elementos ``formantes", que configurariam as diversas possibilidades de expressão. Nesse sentido, a valorização do princípio serial não se deixa confundir com a aceitação pura e simples dos princípios do dodecafonismo. Para Boulez, seria necessário ``alargar os meios de uma técnica já encontrada; esta técnica foi até agora objeto de destruição e por isto mesmo ligada àquilo que ia destruir; assim, nosso primeiro desejo é dar-lhes autonomia".
E esta autonomia dos meios exige que todos os âmbitos da composição sejam igualmente valorizados. Um dos maiores problemas da escola de Viena, segundo Boulez, foi a pouca atenção dada ao tratamento do ritmo (ponto do qual Adorno, nesta época ainda no citado por nosso aprendiz, discordava inteiramente). Boulez foi encontrar no antípoda dos vienenses, Stravinsky, a primeira tentativa de se pensar ``estruturalmente" a noção de ritmo. O ensaio dedicado à análise minuciosa da trama rítmica da ``Sagração da Primavera" é um dos mais importantes do livro e permanece como referência até hoje. Tendo também como antepassados distantes as experiências contrapontísticas das missas e motetos isorítmicos de Machaut e Dufay, Boulez propõe, em várias passagens, um princípio de composição cujo objetivo final seria ``ligar as estruturas rítmicas às estruturas seriais por organizações comuns, incluindo-se não apenas a duração, mas, por outro lado, o timbre e a intensidade".
Mas a organização integral das diversas estruturas acaba tendo de encontrar também um lugar para o acaso. E o processo geral da dialética da racionalização, tão bem diagnosticado por Adorno na ``Filosofia da Nova Música", encontra na geração de Boulez seu momento final, apesar de todo o entusiasmo destes grandes compositores. A tarefa da composição assume novos desafios: ``O grande esforço, no domínio que nos é próprio, é procurar, atualmente, uma dialética que se instaure a cada momento da composição entre a organização global rigorosa e uma estrutura momentânea submetida ao livre-arbítrio". A irracionalidade do acaso é aceita e incentivada, pois faz parte do sistema plenamente racionalizado. O ``jogo de dados" implica a necessidade da regra, como qualquer ``jogo de linguagem". O brilhante aprendiz, vislumbrando as responsabilidades da maturidade, aposta todas as suas fichas nesse jogo quase perdido: ``Devemos salvaguardar essa liberdade inalienável: a felicidade constantemente esperada de uma dimensão irracional".

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