São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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O "Mercosur" e o umbigo da Adriane

JOSUÉ MACHADO
Um criativo analista esportivo escreveu ``nós, latinos-mercusuleses;...". Fez isso por certo baseado na malformada acrografia Mercosul. Acrografia, nem seria preciso dizer, é uma espécie de sigla. É palavra formada com as primeiras letras ou sílabas de outras palavras. Detran, por exemplo, de Departamento de Trânsito; Funai, de Fundação Nacional do Índio; Sudene, sempre tão bem-administrada, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste.
Mercosul foi gerada de Mercado Comum do Cone Sul. Deveria ser Mercoco-Sul, com hífen, para que o ``s" tivesse o valor de fricativa alveolar surda(!), como o de sapo e missa. Não fizeram isso talvez por dois motivos: ``Mercoco" soaria mal; um ``cô" engoliu o outro ou sobrepôs-se. Nada de mal. Em segundo lugar, para facilitar as coisas traduziram ``Mercosur" com casca e tudo e fixaram ``Mercosul", que deveria ser pronunciado ``Mercozul", sabemos todos.
O iluminado que criou a acrografia ``Mercosul" talvez tenha querido homenagear nossos queridos irmãos sul-americanos de fala espanhola, que podem escrever ``Mercosur" corretamente porque em espanhol o ``s" soa sempre como nossos ``ç" ou ``ss". Além do mais não usam o estapafúrdio hífen, sábios que são. Daí o aleijão ``Mercosul", que pronunciamos, subservientes, ``Mercossul".
Várias acrografias e siglas passam a existir linguisticamente como substantivos primitivos, capazes de formar derivados. O PTB virou petebê e gerou os dicionarizados petebismo e petebista; o PFL, Partido da Frente Liberal, transformou-se em pefelê dos pefelistas, porque os nordestinos soletram assim tais letras; poderia gerar Pafreli; o PT, Partido dos Trabalhadores, Petê dos petistas, poderia gerar Patra dos patralistas e assim por diante.
De volta ao ``latino-mercosuleses" do cronista esportivo, toda patota abrangida pelo Merco-Sul é necessariamente latino-americana, melhor ainda, sul-americana (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), por isso o ``latino" juntado ao ``mercosuleses" está mais por fora do que o umbigo, sim, umbigo, da Adriane Galisteu.
É claro que o cronista criou uma derivação quase aceitável do incorreto e já cristalizado Mercosul. Mas os do Sul são sulinos ou sulistas. Teria escrito melhor ``merco-sulinos" ou ``merco-sulistas", corrigindo a incorreção original, como bom corintiano ou palmeirense que deve ser. Tarde demais.

O amor do delegado
Um delegado narrou um caso tristíssimo de assalto com morte da seguinte forma, em conversa gravada. Sim, gravada, registrada para a posteridade:
``O elemento parou (o carro) num lugar ermo para efetuar a subtração dos pertences da vítima."
``Efetuar a subtração dos pertences da vítima?" Cáspite! Como diria Bocage. Que coisa bonita!
Depois:
``A vítima ofertou resistência e foi alvejada com três tiros."
``Ofertou resistência?" Fantástico! Finíssimo!
Não é ficção nem diálogo de programa de humor.
Como conversará uma pessoa como essa com a mulher ou a namorada? Talvez pergunte ao ``adentrar o recinto":
``Permita-me oscular a polpa macia dos lábios teus de mel?" Se a coisa for adiante:
``Apetece-me demasiado subtrair tuas vestes para efetuarmos um intercurso pleno de satisfação."
Se for mais adiante:
``Preferes, amor meu, o decúbito ventral ou o decúbito dorsal?"
Mais longe ainda, agora em trova, parodiando Gregório de Matos, o ``Boca do Inferno", já com o verbo na segunda pessoa do plural:
``Senhora, querida minha,
Solicito permitais
Que introduza o com ..."
Não, melhor respeitar a intimidade da Lei e da Ordem.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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