São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Que o próximo seja bonzinho

JOÃO SAYAD

Existem dois tipos de homens (e mulheres): os dogmáticos e os irônicos. Os dogmáticos precisam se amarrar firmemente a uma teoria ou a um conjunto de princípios que lhes dê segurança e os oriente firmemente. Odeiam a incerteza, têm medo dela. Quando homens de pensamento, são dogmáticos. Ou se voltam às idéias do passado ou apresentam suas novas idéias como a verdade revelada, o ``fim da história"; e as de seus adversários, como heterodoxas e ultrapassadas. É fácil reconhecê-los -falam em ``a teoria", ``a racionalidade", as ``heresias". Quando homens de ação, tendem a ser inflexíveis, duros e extremados. O medo os torna inflexíveis.
Os irônicos desconfiam das próprias palavras, de seus próprios pensamentos e dos pensamentos e teorias que lhes foram ensinados. Por isso são irônicos. Falariam, se pudessem, sempre entre aspas, para que fiquemos atentos à contingência e à precariedade de cada idéia sua e dos outros. Quando homens de ação, parecem tímidos ou titubeantes, mas são, no fundo, muito corajosos -pois conhecem os riscos de cada decisão e a falibilidade do próprio raciocínio. Tendem a ser flexíveis e moderados.
A história do mundo e da economia segue o seu rumo, produzindo novas idéias, pensadores dogmáticos e irônicos, homens práticos corajosos e medrosos. Mas o dogmatismo sempre atrapalhou bastante.
No período entre as duas grandes guerras mundiais, por exemplo, os homens de ação e a política econômica tinham uma obsessão, uma certeza, que a Liga das Nações endossava. Os diversos países tinham que realinhar as suas taxas de câmbio, baseados na teoria da paridade do poder de compra a partir da inflação observada desde antes da guerra. Não levavam em consideração as radicais alterações ocorridas durante a guerra e como resultado da própria guerra; a redução da importância política e econômica da Inglaterra, a nova supremacia dos Estados Unidos da América, a situação dificílima dos países derrotados e o esfacelamento de vários estados da Europa Oriental. Nada disto importava tanto quanto ``realinhar" as taxas de câmbio, de acordo com a teoria da paridade do poder de compra.
O resultado foi desastroso: hiperinflação em vários países da Europa Oriental, a famigerada hiperinflação da Alemanha em 1923, desemprego na Inglaterra, o surgimento dos movimentos fascistas na Alemanha e na Itália e a grande crise de 1930, que acabou criando imenso desemprego nos EUA, na Europa e no Brasil.
Nessa época, o pensamento econômico foi revolucionado pela Teoria Geral do Emprego e da Renda de John Maynard Keynes, que reflete, ao mesmo tempo, a experiência de crises e desemprego do período e marca definitivamente uma nova era. Eu o classificaria como um pensador irônico. A influência do pensamento de Keynes pode ser vista com clareza na declaração do presidente do Federal Reserve de Nova York, ao tomar posse em 1945: ``Nosso objetivo é manter a taxa de juros em 2,5% a.a., como limite máximo, para incentivar os investimentos e reduzir a especulação financeira". Não me enganei, não: são declarações mesmo do presidente do Banco Central americano em Nova York, localizado na Wall Street.
Inaugurava-se uma nova era de prosperidade e crescimento. A reconstrução dos países da Europa foi rápida e bem sucedida, por meio do Plano Marshall. O Brasil mesmo experimentou rápida taxa de crescimento e industrialização, com a substituição de importações. O Japão passou de uma economia subdesenvolvida para uma das maiores economias do mundo. Era a época do planejamento indicativo, do planejamento urbano, do planejamento disto e daquilo.
De 1945 a 1980, a economia mundial conheceu seu período de ouro. Mas, nesse período mesmo, começavam a se gestar as idéias que passaram a dominar o pensamento econômico dos últimos 20 anos.
Lá pelos anos 60, o professor Friedman, da Universidade de Chicago, começava a publicar artigos brilhantes, inteligentes e pontiagudos, afirmando que o conhecimento econômico tinha que voltar à tradição, às suas origens. Que a moeda era muito importante e que o governo deveria parar de atrapalhar o funcionamento da economia. O Banco Central, especialmente, deveria parar de tentar ``controlar a economia" fazendo política monetária. A moeda deveria crescer 5% a.a. e pronto. Esse negócio de aumentar e diminuir a quantidade de moeda só atrapalhava a economia. Que ela crescesse sempre 5% a.a. O emprego se ajustaria ``naturalmente" e o Banco Central que arranjasse outra coisa para fazer.
Afirmava a mesma coisa com relação ao câmbio: que os técnicos do Banco Central não sabem fixá-lo, podem fixar muito alto ou muito baixo e, se errarem ou acertarem, não faz diferença para eles. Seria melhor que o câmbio fosse fixado pelos especuladores. Especulador que acerta, fica rico; especulador que erra, quebra. Sobrarão apenas os especuladores que acertaram e, se acertaram, ótimo. Um pensador brilhante e dogmático.
Eram as sementes do pensamento econômico dos últimos 20 anos, a partir do governo Reagan: o governo atrapalha, o câmbio deve ser flutuante e o déficit público assume o papel de vilão principal, no lugar da teoria da paridade do poder de compra dos anos 20 e 30.
E os últimos 20 anos são marcados por baixas taxas de inflação, mas elevados níveis de desemprego nos EUA e na Europa, dez anos de crise da dívida externa nos países da America Latina, imensos fluxos de emigração dos países pobres para os países ricos. Globalização e progresso no Primeiro Mundo. Mas desemprego em geral e dificuldades crescentes na maior parte dos países.
Quando perguntaram ao Friedman o que era moeda, a resposta foi surpreendente: pode ser M0, M1, M2, M3, M4 ou M5. Qualquer coisa. Não é preciosismo meu. Se o governo tiver déficit e financiar por emissão, pode acabar sendo exatamente a mesma coisa que financiá-lo por dívida pública. Não importa: moeda é, para a teoria do Friedman, o que causa inflação. E inflação é o resultado de excesso de moeda. É como se Newton dissesse que a lei da gravidade é o que atrai os corpos para o centro da terra, e o que atrai os corpos para o centro da terra é a gravidade!
O sucesso desta nova teoria foi avassalador. O prof. Eugenio Gudin passou a vida inteira escrevendo em ``O Globo" que tinha que parar a emissão de moeda, fosse o que fosse a moeda. O prof. Pastore, entretanto, mostrou em 73 que a moeda no Brasil deveria incluir os depósitos do Banco do Brasil, quando os funcionários do banco ainda eram considerados ótimos partidos para casar. Em 90, o mesmo prof. Pastore argumentou que a dívida pública no Brasil era equivalente a moeda, pois o Banco Central compra e vende dívida pública a preço conhecido e constante. Assim, fazer política monetária no Brasil é equivalente a trocar cem moedas de um real por uma nota de cem reais. E tem gente que era contra a dolarização porque o Brasil ia perder a possibilidade de fazer política monetária!
O prof. Chico de Oliveira diz que a moeda é uma relação social. Marx, que a moeda é um mistério. Ainda que não soubéssemos o que é moeda, a nova teoria podia ser aplicada. Bastaria aumentar os juros a níveis astronômicos. O que foi feito em 81, em 83, em 85 com o ministro Dornelles, em 88 com a política do feijão-com-arroz, em 91 com o ministro Marcílio. Por quê? Para reduzir a quantidade de moeda. Mas qual, M0... ou M5? Dogmatismo não admite muitas perguntas.
O mundo não volta para trás. Precisamos de novas idéias para uma nova realidade. Quem será o economista que está produzindo novas idéias para a política econômica das minhas netas? Espero que seja um homem de pensamento irônico, escrevendo para um ministro da Fazenda prático e corajoso. Que não classifiquem o pensamento em ortodoxo e herege, em vitorioso e ultrapassado. E que ambos sejam bonzinhos.

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