São Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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Globalização: mito e realidade

WOLFGANG LEO MAAR

A globalização em que nos inserimos é um processo social e não técnico. A ``sociedade global" é uma formação social de relações de produção capitalistas que se impõem ao complexo das forças produtivas e ao conjunto das manifestações sociais.
As relações de produção não perderam relevância porque se dissolve a sua ``contradição" com as forças produtivas. Ao contrário: impregnam agora totalmente as forças produtivas, evitando sua contradição, subordinando-as e a todo o resto aos ditames de sua acumulação. O resultado aparece, contudo, encenando uma situação harmoniosa, ``racional", em que o capitalismo estaria irmanando ao desenvolvimento da ciência, da liberdade, da modernidade, da sociedade global.
Ora: o ``liberalismo" não era liberal como propalava, nem a ``sociedade industrial" é moderna, nem a ``sociedade global", global!
Nosso atraso no capitalismo industrial era uma questão social e não técnica. De fato não existia a possibilidade de recuperar o atraso com uma industrialização tardia nos moldes vigentes, pela substituição das importações. O desequilíbrio não era tecnicamente superável, mas socialmente estrutural.
Quando preciso, era reposto na estrutura transnacional de poder. Tornar-se independente era a ilusão que subordinava os países simpaticamente ``em desenvolvimento" à lógica do mercado mundial capitalista estruturado.
A teoria da dependência percebeu a questão e, saltando da fervura à brasa, consolidaria a estrutura política existente como ordem natural do mundo em que haveria de se inserir: a realidade convertida em fatalidade. Por que haveria agora uma ``brecha" nessa globalização -como antes se supunha haver na ``sociedade industrial moderna"- facultando-nos uma inserção civilizada no mercado capitalista mundial?
É preciso fazer a crítica dessa globalização em seus aspectos essenciais, revelando-a como presente histórico e não destino fatal. Não basta pensar a globalização, é preciso pensá-la historicamente! O novo no contexto atual é que chegou a seus limites mundiais a necessidade de a sociedade capitalista envolver todas as formas sociais objetivas e subjetivas no processo de sua reprodução.
Ao envolver necessariamente todos os planos -econômico, social, político, cultural-, apresenta-se como totalidade exclusiva (que não é). A totalização necessária de abrangência mundial aparece como ``globalização", ``mundialização da cultura" etc. Mundialização que obstrui a reflexão crítica dessa totalização. Assim a cultura, a sociedade global, parecem tornar praticamente absolutas as formas concretas que se apresentam hoje.
Instala-se um deslumbramento frente à realidade global: ``a" globalização existiria autonomamente como dado fatual, restando apenas inserir-se nela, para que ``os mais capazes" sobrevivam num ambiente de darwinismo social, subordinando ``racionalmente" os ``incapazes". Ser crítico passa a ser comparável a desafiar as leis da natureza!
Mas a globalização é uma forma capitalista de globalização, assim como a liberdade liberal era uma (muito restrita) liberdade que alienava todos os aspectos não-formais da cidadania no plano da sociedade civil. A globalização globaliza sobretudo um ``padrão racional" para aparecer como totalidade: por exemplo, o seu modo de ver a exclusão, ``ser não-global" que poderia ser incluído numa ``razão global" (a brecha para o Brasil!). A exclusão, porém, precisa ser apreendida nos termos dos mecanismos que a geram operando nesse processo de globalização.
A temática prioritária -e não o resultado mais imediato- do processo de globalização capitalista é o ``fim da sociedade do trabalho", a redução do fator trabalho na produção. Não por acaso: o ``trabalho" não é reduzido por ser pouco importante, mas por continuar decisivo, exigindo ser domado e limitado nos termos das relações de produção vigentes.
A exclusão social -nacional ou global- nada mais é do que a face social concreta gerada pela limitação do trabalho vivo no modo de produção capitalista. O concerto ideológico em torno do ``fim" da sociedade do trabalho e da socialização pelo trabalho procura sobretudo apagar a vinculação dos mecanismos geradores da exclusão com a esfera do trabalho social, que colocaria a nu os limites da razão global.
Procura-se desarticular o mundo da exclusão e o mundo do trabalho (haja vista o combate do governo FHC à CUT) procurando legitimar-se em critérios globais -competência, competitividade etc.- que estariam fora da ``racionalidade do trabalho".
Mas, evitando uma ineficaz crítica meramente ideológico-cultural e enfocando a realidade negativa dessa globalização capitalista -a exclusão como realidade negativa do processo de exploração do trabalho-, torna-se patente a realidade prioritária do trabalho social.
A globalização é a demonstração da persistência da centralidade da categoria do trabalho social nessa abrangência totalizante, inclusive em termos organizacionais. O primário não é a polarização imediata ``nacional"/``global": essa falsa objetivação oculta o trabalho social e os mecanismos de coisificação, de alienação, de exclusão e de deslumbramento no modo de produção vigente.
Do mesmo modo o fenômeno da mundialização da cultura não pode ser apreendido apenas nos termos da função afirmativa dos bens culturais concretos. Em vez de sociedade global, ainda é melhor falar de capitalismo mundializado. Não há por que apressar-se em abandonar ``paradigmas envelhecidos", como Habermas e os ingênuos adeptos de um ``fairplay" que resultaria na inclusão dos excluídos.
Impõe-se uma aproximação crítica, negativa, expondo o processo que objetivamente se apresenta como deslumbramento, em vez de se fixar na aglutinação de seus resultados. A crítica permanente e inexorável dessa realidade.

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