São Paulo, terça-feira, 8 de agosto de 1995
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A reforma da Constituição e o referendo

HÉLIO BICUDO

Gomes Canotilho, demonstrando aguda sensibilidade, ao indagar sobre a legitimidade em uma sociedade aberta, subordinada a uma ordem de valores, assinala o risco em que se pode incorrer no estabelecimento de uma ordem ``fechada" e ``totalizante", imposta como a ``verdade" ou a ``justiça".
Daí, a proposta da ordem legitimada por meio de competências e procedimentos. Em vez de se insistir na legitimidade por meio da ``verdade" ou dos ``valores", sempre suscetíveis de se tornarem integracionistas e totalizantes e, ao mesmo tempo, de sofrerem erosão progressiva quanto à sua credibilidade, a legitimidade deve resultar das competências de decisão e do procedimento.
Em suma, aponta o ilustre constitucionalista português: ``as linhas ou padrões de conduta incorporadas numa constituição não são `aceites' por serem intrinsecamente justas; elas são aceites como `legítimas' porque são o resultado de um poder constituinte revelado através de um procedimento constituinte típico de um `sistema jurídico funcionalmente ordenado"' (cf. ``Direito Constitucional", p. 117).
Trata-se, entretanto, de uma resposta insatisfatória, como o admite ainda Canotilho, pois não só recupera as teses positivistas -a legitimidade deriva do ``sistema" regular e funcionalmente ordenado-, como enfatiza a discussão procedimental -basta o procedimento ser ``regular" (legal) para o resultado ser justo em desfavor das dimensões materiais do problema.
A legitimidade de uma constituição seria, portanto, buscada quando decidida ou produzida por um poder escolhido por meio de um procedimento funcionalmente ordenado. Destarte, a dimensão procedimental da legitimidade é um fato da maior relevância para se aquilatar a abrangência de uma lei fundamental.
Ora, o Brasil vive um momento excepcional de reformulação constitucional. Apresentando emendas à consideração do Congresso Nacional, configurado para impor determinada ideologia político-econômica, a Presidência da República está levando a termo alterações que, praticamente, quebram a espinha dorsal do texto de 1988, tudo segundo procedimentos que se dizem ínsitos na própria Constituição e nas leis internas do Congresso Nacional.
Não se cuidou de assegurar uma ordem social vinculativamente ordenada, mas de impor a vontade da maioria, que nem sequer encontrou seus limites no cumprimento da própria Constituição, quando até se fala na preservação dos princípios fundamentais da República, responsáveis pelas declarações dos direitos e garantias individuais, ou ainda, nas normas constantes dos regimentos internos das duas Casas, quando se atropelaram claros dispositivos legais no açodamento de se cumprir a vontade imperial.
Aquilo que se está aprovando e logo mais promulgando é o resultado de um concerto entre a Presidência da República e a maioria do Congresso Nacional, concerto esse alcançado portas adentro do Parlamento, sem que a sociedade civil tenha tido a oportunidade de se manifestar.
Essa questão foi vislumbrada a partir do instante em que começaram a surgir propostas para a submissão das emendas aprovadas ao referendo popular.
Esse objetivo poderia ser alcançado mediante normas transitórias apostas ao próprio texto das emendas, ou com a adoção de uma resolução do Congresso Nacional relativa a todas as emendas.
Se a primeira solução não mais seria factível, porque não se agilizaram as emendas a respeito apresentadas, a segunda poderá ser ainda viabilizada.
E seria da maior importância que o Congresso Nacional adotasse o caminho do referendo, pois é inadmissível que emendas que quebram -como salienta erudito parecer do Instituto dos Advogados Brasileiros- a própria espinha dorsal da lei fundamental do país sejam empurradas ao povo em um processo apenas ``interna corporis".
A discussão das emendas com os vários segmentos da sociedade, mediante debates na TV, no rádio, na imprensa escrita, nas universidades, sindicatos e movimentos populares, daria às reformas propostas um consenso maior, fundamental quando se procura uma presunção de legitimidade.
O referendum é a consulta popular direta que, respeitando os princípios básicos do estado de Direito democrático-constitucional, tanto no procedimento como no seu conteúdo e sentido, visa alterar ou conservar -total ou parcialmente- a ordem jurídico-constitucional existente.
Em remate, o recurso ao referendo tem como única finalidade consultar o povo sobre a ruptura, ou não, do contrato social por aqueles que o representam, chegando-se, então, à consensualidade que os princípios de justiça informam.
E, sobretudo, se impõe quando se pretende passar da social-democracia para o neoliberalismo. Pois, não assentada na vontade popular, a reforma em curso, ou outras que se fizerem, irão esbarrar, possivelmente, na vontade política dos próximos presidentes eleitos, encaminhando-nos mais e mais para o arbítrio que desqualifica a democracia.

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