São Paulo, terça-feira, 8 de agosto de 1995
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Corte-se o essencial

ANDRÉ LARA RESENDE

Há alguns anos, esteve no Departamento de Economia da PUC do Rio um membro da equipe responsável pelo programa de estabilização em Israel. Durante muitos anos, Israel foi o único não latino-americano a fazer parte do triste grupo de países com inflação crônica. Por ocasião da visita, o programa tinha sido bem-sucedido e parecia se consolidar. O visitante era o responsável pelo caixa. Não me lembro qual era o seu cargo, mas toda despesa dependia de sua confirmação; os recursos deveriam estar orçados e disponíveis. Uma espécie de Secretaria do Tesouro toda-poderosa. O objetivo era garantir o equilíbrio fiscal, sem o qual, sabia-se, não era possível vencer a inflação.
Por aqui se diria que toda verba dependia de sua autorização para ser ``liberada". Como me chamou a atenção um amigo que passou pelo governo, a idéia de que as verbas são liberadas pressupõe que elas existam, mas estejam aprisionadas por algum inimigo do povo. Mas, voltemos ao nosso israelense. O homem fez uma apresentação extraordinária. Aproveitou o clima informal da sala de reunião para contar, de forma pessoal e despretensiosa, pequenas histórias das dificuldades práticas encontradas durante os primeiros anos da estabilização.
As pressões foram terríveis e de toda ordem. Em Israel, como em qualquer país do mundo, há carências. As demandas legítimas superam sempre os recursos disponíveis. Na tentativa de equilibrar o orçamento, foi feito um esforço de racionalização dos gastos, mas não houve como escapar dos cortes proporcionais em todos os programas.
A inflação parecia controlada. O entusiasmo inicial começava a dar lugar a uma certa irritação com a forma implacável com que o governo controlava os gastos. A campanha contra a política do governo esquentava a cada dia. Em casa, depois de mais um dia de negativas para parlamentares e explicações para os meios de comunicação sobre as razões para manter as despesas dentro do limite do arrecadado, o nosso guardião do cofre de Israel assistia ao telejornal com a família.
O repórter visita um hospital: doentes por todos os lados, camas nos corredores, sofrimento e aflição em estado puro. Corta e a câmera focaliza o diretor do hospital, rosto compungido: não há dinheiro para comprar mercurocromo. Novo corte: o nosso guardião do cofre explicando em termos técnicos e abstratos que não poderia aprovar despesas para não aumentar o déficit fiscal. A expressão angustiada, as filhas o questionaram em silêncio.
A pressão demagógica é implacável. A saúde pública tinha total liberdade para a alocação das verbas, mas o primeiro a ser cortado foi o essencial. O supérfluo e o desperdício não; cortá-los dava trabalho e não dava ibope. Só quando se percebeu que as restrições orçamentárias eram para valer é que a racionalidade no uso de verbas escassas reapareceu. Foi o que nos contou o visitante. Pena que o dr. Jatene não tenha ouvido.

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