São Paulo, sexta-feira, 11 de agosto de 1995
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Ex-deputado virou sociólogo por acaso

CYNARA MENEZES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Florestan Fernandes era um self-made-man do meio intelectual. A incrível trajetória pessoal do sociólogo, filho de doméstica, daria, por si só, um tratado acadêmico. Em janeiro, uma semana antes de deixar o Congresso, ele recebeu a Folha em seu gabinete para uma entrevista. Leia a seguir trechos em que fala sobre sua juventude.

A ORIGEM
Eu era parte de uma família portuguesa, de origem camponesa e culturalmente atrasada, que veio se urbanizar no Brasil. Meu avô morreu de tuberculose e a família se desagregou. Minha mãe veio para a cidade e a única coisa que ela estava habilitada a fazer era trabalhar como doméstica.
A INFÂNCIA
Com seis anos comecei a trabalhar. Trabalhei como engraxate, fui auxiliar de marceneiro. Me senti muito à vontade como carpinteiro numa pequena indústria. Não tinha atividade imperativa, era parte da máquina. Trabalhei como alfaiate, mas era um trabalho penoso e que não enriquece o ser humano. Fui trabalhar em um restaurante, na copa, e de noite havia fregueses que não comiam a comida de lá se eu não fizesse.
A MADUREZA
Em cima do bar se instalou um curso de madureza chamado Riachuelo. Foi difícil conseguir autorização do bar para sair três vezes por semana para fazer o tiro-de-guerra, na hora de maior movimento. Mas como era bom profissional, eles me deram. No curso, eu e meu grupo fundamos uma pequena academia, tínhamos discussões, um jornalzinho.
O GINÁSIO
O curso de madureza permitia que se fizesse cinco anos em três, e dava o direito de fazer o exame no ginásio oficial, que tinha cinco anos, incluindo o latim. Fizemos os três anos e fomos fazer o exame no ginásio estadual de São João de Boa Vista. Mas, infelizmente, um outro curso ofereceu uma quantia compensadora para os professores do ginásio se tolerassem as deficiências de um grupo de alunos. Eles ficaram revoltados e o resultado é que houve um exame muito rigoroso. Perdemos quatro colegas que em outras ocasiões não perderíamos, e por isso os dois anos seguintes foram fáceis, porque éramos tidos como gênios.
NA UNIVERSIDADE
Terminado o curso, eu poderia ir para o colégio da universidade, que funcionava na própria universidade, ou fazer o concurso para entrar direto. Por modéstia, concorri aos dois. Nos exames de habilitação quem me examinou, só para ter uma idéia do que era a Faculdade de Filosofia, foram os dois Bastide, o Roger e o Paul (sociólogos franceses). O livro que eles nos deram foi "A Divisão do Trabalho Social", de Durkheim, que até hoje os estudantes têm medo na pós-graduação. Eram 30 vagas, 29 candidatos e seis aprovados. Eu fiquei em quinto.
DENTADURAS E LIVROS
Neste ínterim, havia o problema de como me manter. Acabei indo trabalhar na American Dental Company, cujo dono era jovem, meu amigo. Nós vendíamos um produto para fazer dentaduras, e ganhávamos um dinheirão com isso. Ele por ser bonito, e eu, pelos livros. Lia muitos romances, e emprestava para as enfermeiras.
SOCIÓLOGO POR ACASO
Cheguei a querer fazer engenharia química, mas acabei caindo em um curso que por acaso correspondia à minha vocação. Tanto correspondia que no primeiro ano tive que fazer uma pesquisa, na cadeira do professor Roger Bastide, sobre folclore. Era minha cultura de origem, então sabia onde colher o material. Combinei a análise folclorista à sociológica, um trabalho enorme. Ele ficou encantado.
FLORESTAN E OSWALD
Fui convidado a colaborar com jornais. Na Folha, fiz três artigos sobre a representação do negro na cultura popular, e comentários que foram variando com o tempo. Ser estudante e colaborar com jornais era uma projeção que você não pode avaliar. Tanto que quando Oswald de Andrade me encontrou pela primeira vez fez uma brincadeira meio estúpida. Disse: "Você é o Florestan Fernandes? Pensava que fosse um velho maluco".

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