São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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Mucama de bits

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Nenhum outro setor da vida contemporânea dedica-se tanto ao exercício de imaginar o seu, o meu e o nosso futuro quanto o da informática. O crescimento vertiginoso da indústria, o desenvolvimento de tecnologias, a produção de novos softwares e os serviços criados a partir do computador eletrodoméstico deram origem a uma onda infernal de previsões.
Por toda parte, e quase diariamente, “gurus” ou departamentos promocionais de empresas dizem na imprensa, em conferências, em livros ou em vídeos como será, afinal, o mundo de amanhã.
“Você vai poder falar com a máquina.” “Você vai poder fazer compras com um simples toque na tela.” “Você vai poder fazer reuniões de trabalho à distância, sem levantar da cadeira.”
Curiosamente, as maravilhas que se anunciam sempre convergem para a idéia de que todos os atos da sobrevivência e do lazer poderão ser cumpridos no doce e aconchegante recinto do lar, na “casa eletrônica”, como observou Otavio Frias Filho, em sua coluna da última quinta.
As separações entre casa e rua, público e privado, vida doméstica e trabalho tendem, nessas profecias, a serem anuladas. Prega-se uma espécie de retorno ao futuro: é como se depois da superação do trabalho contíguo à casa, no feudo e no artesanato, eliminado pela revolução industrial e pela fábrica, pudéssemos, agora, via informática, reencontrar a perdida unidade produtiva doméstica de outrora.
Como o camponês que semeava nos campos do senhor e ali morava ou como o artesão que fazia o ofício num espaço justaposto ao de seu teto, o homem do futuro imaginado pelos gurus da computação não precisará sair de casa para fazer nada.
Ele deixará, cada vez mais, de se confrontar com a multidão, de sentir o bulício da massa de indivíduos que se desloca entre a casa e o trabalho e de se situar na trama da cidade, com suas assimetrias, suas gentes e mensagens.
Cada vez mais, portanto, ele estará isolando-se da coisa pública: a república da informática será uma rede de indivíduos, interligados por satélites ou fibras óticas, que se esconderão ou aparecerão na imaterialidade das telas de computador.
Certamente o homem do futuro poderá, pelos mesmos meios, cumprir os deveres e assegurar os direitos da cidadania sem sair de sua casa.
Talvez, ainda, ele venha a poder programar sua máquina para fazer absolutamente tudo, como uma mucama de bits. Estará, assim, livre para ocupar o lugar que o sonho da informática parece reservar-lhe: a poltrona.
As profecias talvez sejam verossímeis, mas até que sejam verdadeiras e universais vai uma distância. Quer dizer: aquilo que os futurólogos falam que vai acontecer com você, nem sempre acontecerá com você. E não é nem certo que acontecerá.
Tarefa que a indústria do ramo parece cumprir com prazer.

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