São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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No útero do nada

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O argentino Olivério Girondo (1891-1967) é o terceiro e menos conhecido membro do triunvirato de poetas que renovou a poesia hispano-americana neste século. Os outros dois são o chileno Vicente Huidobro, autor de "Altazor, e o peruano César Vallejo, autor de "Trilce.
Mas, embora estes dois tenham sido bem divulgados e traduzidos para vários idiomas, a ótima versão brasileira que Régis Bonvicino fez de "A Pupila do Zero é a primeira para qualquer língua. Além do texto bilíngue dos poemas, ela também inclui ensaios críticos do tradutor, de Jorge Schwartz e Raúl Antelo, um ensaio gráfico de Guilherme Mansur e ilustrações de Regina Silveira.
Trata-se do último livro de Girondo que, antes disso, havia também participado decisivamente das vanguardas dos anos 20. Seu título original é "En la Masmedula, algo assim como "no mais profundo âmago da medula ou "dentro do mais íntimo interior. Régis optou, seguindo os passos de outro entusiasta de Girondo, o crítico e poeta argentino Saúl Yurkievitch, por lançar mão de um verso do poeta para batizar o volume. Este, embora ignorado pelo público mais amplo, inclusive em seu próprio país, onde, entre os anos 60 e 90, não foi nem sequer reeditado, contava com um seleto círculo de admiradores no Brasil: Haroldo e Augusto de Campos, que traduziram três de seus poemas, o crítico Jorge Schwartz que, sobre ele, publicou em 1983 seu "Vanguarda e Cosmopolitismo, Samuel León, editor de "A Pupila do Zero, e o próprio Régis, cujo projeto de traduzi-lo remonta aos anos 70.
A poesia de Girondo, embora singular, não é sem precedentes. Seu tradutor a compara a Augusto dos Anjos, mas pode-se ir além, regredir mais e, como Anatol Rosenfeld, que, em seu ensaio pioneiro, achou borgesianamente os "precursores do brasileiro no expressionismo alemão, pode-se também falar do parentesco do argentino com Gottfried Benn, que, num de seus poemas, para escapar à dor do humano, desejava ser, como os "ancestrais primevos, "um grumo de lodo num pântano morno.
Na poesia do argentino proliferam igualmente as imagens de um estado primitivo, pré-humano, mas com uma diferença importante: ele o situa não no passado remoto, mas dentro de si mesmo. E mais do que isso: ele o gera nos seus poemas com imagens incorporadas, com justaposições violentas de termos aparentemente incompatíveis, com neologismos chocantes e, sobretudo, com prefixações e sufixações de palavras antes familiares que, flexionadas em novas situações gramaticais, tornam-se abruptamente estranhas. Tudo isso é recapturado na tradução. Sua linguagem -dadaísta na sua impaciência em face da normalidade instituída- vive num perpétuo retorno ao estado embrionário, onde as regras ainda não teriam sido fixadas, podendo, portanto, ser alteradas à vontade.
Não se trata, porém, do estado ou da linguagem de uma utópica inocência primordial, mas sim de algo informado por todo o vivido. Seu estado de indiferenciação talvez se assemelhe assim não tanto ao dos tecidos ainda em formação quanto ao que lhes ocorre durante a decomposição final. Ela ilustra deste modo a idéia da morte como uma espécie de regresso ao útero do nada. Girondo leva a lírica, enquanto poesia do eu, ao seu limite interior de dissolução. Ele, por assim dizer, "elabora muitos dos temas e questões centrais da psicanálise -e esta adoraria, sem dúvida, poder reivindicar para si uma poesia cuja linguagem, referindo-se continuamente a "ego e "libido, patenteia, no entanto, quão friável é o princípio da identidade. Mas o "pré-eu a que o poeta remete nada tem a ver com o "id -aquela fantasia de ficção-científica finissecular inventada pelo curandeiro vienense.
Apropriando-se da terminologia psicanalítica para seus próprios fins, o que Girondo faz, mais do que dar corpo à língua do eu, é enraizá-la no orgânico, em tudo que este possui de funcionante e de potencialmente podre. À sua maneira, então, o argentino concentra e cifra um tema que remonta, pelo menos, à carniça de Baudelaire.
Se o francês buscava explicitar em seu poema a continuidade ou parentesco entre a beleza transitória do que vive e o repugnante de sua decomposição, o argentino, por sua vez, imbui esta última de consciência, fazendo, de certa forma, até mesmo a carniça baudelaireana falar. Daí a pertinência da epígrafe de Jorge Schwartz ao seu ensaio: trata-se da última estrofe de um poema no qual o poeta barroco espanhol Quevedo diz que, após a morte, seu sangue "há de ser cinza, mas terá sentido e suas medulas "hão de ser pó, mas pó enamorado.

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