São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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Um mundo em pedaços

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos últimos anos, não se fala de outra coisa senão da globalização. A palavra impõe-se, de fato, para descrever a abertura de todos os países ao mercado mundial -abertura por vezes entusiasta, como na Polônia ou na Hungria pós-comunistas, por vezes lenta e vacilante, como no Brasil ou na França.
O termo é usado também, de maneira ainda mais simples, para dar nome à difusão generalizada de uma sociedade de consumo que, à primeira vista, transformaria o planeta num imenso "duty-free.
Essa noção tão cômoda, porém, choca-se com duas realidades contrastantes. A primeira é o crescente dualismo presente na grande totalidade dos países: todos participam do mercado mundial, mas, nos países ricos, 20% da população ficam de fora do processo econômico -cifra que atinge na América Latina o patamar de 50% e eleva-se em determinadas regiões, sobretudo na África, a 80%. Uma tal realidade, de tão evidente, faz o tema da globalização parecer mais ideológico do que descritivo.
Mas existe também outra realidade que, embora seja menos discutida, não é por isso menos importante. Cabe-nos perguntar: o mundo atual, em vez de se unificar por meio da interdependência crescente das ramificações do sistema "trilateral, composto pela América do Norte, a Europa Ocidental, o Japão e os outros tigres ou dragões da Ásia oriental, não estaria prestes a se fragmentar entre esses três subconjuntos, que tenderiam mesmo a tornar-se, além de pólos concorrentes do desenvolvimento econômico, tipos opostos de sociedade?
O fato brutal que conduz a essa idéia é a guerra comercial desencadeada pelos Estados Unidos principalmente contra o Japão. Tal conflito dominou a recente reunião do G7 em Halifax. Até o momento, os japoneses suportaram tão bem o choque da subida do yen, que aparecem agora como a primeira potência mundial, apesar de seu país não possuir mais a solidez das conquistas de outrora: o crescimento foi interrompido e o estouro da bolha financeira trouxe consequências nefastas para a capitalização das empresas. Os europeus, por sua vez, estão diretamente ameaçados pela queda do dólar e correm o risco de ver desaparecer a retomada de seu crescimento, com a qual tanto contavam.
Os Estados Unidos, que se sentem ameaçados por seus concorrentes e não exercem mais a hegemonia mundial, uma vez que o perigo soviético deixou de existir e que uma operação como a guerra do Golfo é dificilmente imaginável hoje em dia, retomam a iniciativa econômica, particularmente em dois setores decisivos: a indústria informática e as telecomunicações, que comandam as "indústrias culturais, como o cinema, a televisão e os novos multimídias.
Na atual conjuntura, cada uma das três grandes regiões industrializadas do mundo vê-se impelida a uma estratégia política e econômica diferente. Os Estados Unidos são os campeões do mercado aberto e lançam as bases de uma sociedade diversificada e multicultural, mas na qual simultaneamente as forças de desintegração são poderosas.
A Europa e seus principais países permanecem aferrados a uma fórmula pós-social-democrata, que funciona bem na Alemanha, um pouco pior -ou seja, de maneira mais corporativista- na Suécia ou na França, que resistiu ao thatcherismo no Reino Unido e desmoronou na Itália, juntamente com todo o sistema político. O Japão ainda parece indeciso: mantém-se preso à democracia ocidental, mas é atraído também pelo "asiatismo, isto é, a combinação entre liberalismo econômico e autoritarismo político, de que se orgulham países tão diferentes como Indonésia, Cingapura ou mesmo Taiwan.
O modelo europeu é o mais frágil dos três, e sua fragilidade é reforçada pela escandalosa impotência dos países desse continente em porem fim à purificação étnica que cobre de sangue e desfigura a antiga Iugoslávia. Além disso, a Europa não teve sucesso, apesar dos esforços da Alemanha, em retraçar suas fronteiras na Europa do leste e ao sul do Mediterrâneo, à diferença dos Estados Unidos com o Nafta e do Japão em sua zona de influência.
Mas a concorrência ou o conflito dos três pólos dependerá, antes de tudo, daquilo que ocorrer nas zonas exteriores a tais pólos hegemônicos, as quais representam, ao mesmo tempo, mercados gigantescos e, principalmente, fontes em potencial de instabilidade ou agitação política. De modo geral, existem quatro zonas desse tipo: a Rússia e a CEI (Comunidade dos Estados Independentes) reconstituída, a China, a Índia e um Mercosul ampliado.
Sem dúvida alguma, a zona mais sensível e mais perigosa é a Rússia. A passagem à economia liberal e a uma política democrática fracassou com a eliminação de Gaidar. O governo de Ieltsin tornou-se a um só tempo mais autoritário e mais frágil. Desde o início da guerra na Tchetchênia, são poucos os que acreditam que o presidente conseguirá chegar ao termo de seu mandato.
As duas alternativas mais prováveis, após seu governo, são o retorno ao poder do capitalismo nomenklaturista, de quem Tchernomirdin é o líder mais sólido, mas pouco popular, a despeito de sua conduta bastante positiva em relação à Tchetchênia, ou a vitória do "boulangista (mais que do bonapartista) general Lebed, apoiado pelos descontentes e, sobretudo, pelos idosos, cujas aposentadorias sofreram cortes drásticos.
A Rússia não se aliará ao Ocidente; permanecerá talvez a meio caminho entre o Oriente e o Ocidente, ocupada em administrar uma modernização extremamente difícil, embora também corra o risco de submergir num nacionalismo cada vez mais agressivo.
Paralelamente, a China, num futuro próximo, poderá desagregar-se entre a China de Pequim, ela própria em via de desmembramento, e a China de Cingapura, o que facilitaria a conquista do antigo Império do Meio pelo Japão; mas poderá também preservar uma certa unidade e conservar com isso um mercado onde se defrontarão os três grandes centros econômicos mundiais.
A Índia possui um modelo social e político mais sólido, que, no entanto, encontra-se ameaçado pelo crescimento dos conflitos comunitários, eles próprios diretamente vinculados ao desenvolvimento acelerado da economia clandestina e do crime. O conjunto Brasil-Argentina-Chile depara-se com um cenário mais favorável para administrar de maneira proveitosa a concorrência dos três pólos e ingressar assim rapidamente no mundo industrializado.
Por fim, além dos pólos e de sua concorrência, das zonas e de sua instabilidade, existem falhas geológicas situadas tanto sob o mundo arábico-muçulmano, cada vez mais enclausurado em sua identidade agressiva associada ao profundo fracasso econômico, quanto sob o mundo da África subsaariana, com a admirável exceção da África do Sul de Mandela.
Essa representação geopolítica do mundo está bastante afastada da imagem de um sistema mundial centrado nos Estados Unidos e composto de zonas concêntricas. O sistema mundial foi quase sempre policêntrico, a exemplo do final do século 19 -época do grande crescimento paralelo da Alemanha, dos Estados Unidos e do Japão.
A hegemonia inglesa no século 18 e a americana na segunda metade do século 20 não passaram de exceções, e, por isso, é arriscado definir um futuro comum a toda a humanidade, como o quis há alguns anos, de maneira absolutamente irrefletida, o teórico Francis Fukuyama.
O processo em curso mais importante é provavelmente o da tripolarização do mundo, mas as transformações mais dramáticas podem vir das zonas de relativa fragilidade representadas pelas duas antigas potências comunistas, a Rússia e a China. Nessa conjuntura, torna-se evidente a urgência de efetivamente criar e reforçar o Mercosul, de estabelecer relações de troca realistas no interior do conjunto Brasil-Argentina e com o resto do mundo.
Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

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