São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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A culinária das palavras

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Polemas Intactos expressa a partir do título um embate entre sentidos opostos. Poemas polemizam com lemas. Os diferentes sentidos colidem, mas o título permanece intacto em seu estranhamento. Passado este ponto, vem uma introdução lapidar: "Polemas: problemas na prole,/ pobrema entre a patroa e a empregada./ Polemas intactos/ embora parte da casa desabada. Um livro feito de problemas, seria ele problemático?
A poesia de Celso Nogueira parece se organizar em torno de uma questão: a passagem dos sentimentos sublimes para o princípio da realidade. Este é um aspecto que chama a atenção e determina o tom geral do livro. O sujeito lírico descreve sua condição precária, que vai desde uma inadequação para a vida prática até a sensação opressiva do universo do trabalho, responsável por bons poemas como "Hora Extra, "Da Palavra Ofício ou "A Moça da Padaria. Dentro dos tropos clássicos -metáfora, metonímia, sinédoque e ironia-, poderíamos dizer que Celso capta o mundo em chave irônica. Tal recurso, se lhe dá um viés crítico, quando convertido em auto-ironia, expõe a situação periférica do poeta, impotente diante das questões centrais: "Não está na hora de dobrar a língua,/ nem de morrer à míngua,/ que a vida não passa por aqui, esbarra.
O livro abre com "Aos Pés da Cruz da Múltipla Escolha, uma espécie de "Poemas das Sete Faces atualizado: "Pai! Permiti a esperança, a fé e o alento/ aos que dormem no ponto. Mas há uma diferença importante. Em Drummond, ser "gauche é uma recusa das regras sociais estabelecidas, insatisfação do indivíduo consigo mesmo e com o vasto mundo. A auto-ironia de Celso, por vezes, resulta numa ambivalência problemática, mescla de agudeza crítica e retórica da resignação.
Isso ocorre quando a ironia é rebaixada para a condição de escracho. Este, ao adquirir status de experiência comum, anula o aspecto corrosivo da ironia. Em outras palavras, enquanto a ironia é demolidora, implica destruição e potência negativa, o escracho é baixar a guarda, um cansaço das formas.
Esse não é um perigo que afeta apenas a poesia de Celso, está presente em poetas tão diversos como Paulo Leminski e Sebastião Nunes. Do ponto de vista formal, resulta numa poesia que só encontra refúgio no poema de notação rápida. Ao contrário da poesia de Oswald de Andrade -crivada de sentido histórico e humor crítico-, o verso curto de hoje funciona como mero circuito fechado da linguagem, acarretando perda de energia construtiva e conceitual.
Como essas questões se articulam na leitura de "Polemas Intactos? O livro traz um problema característico das estréias: excesso de poemas e pouca preocupação formal. Ou seja, os bons momentos ficam ofuscados pelo conjunto desigual. Concordo com o crítico que diz: "Nunca se deve ser mesquinho nos cortes. A extensão não tem importância, e o medo de não haver aí o bastante é pueril. Não se deve achar que algo mereça existir só porque já está aí, porque foi escrito. Se várias frases parecem variações do mesmo pensamento, com frequência designam apenas diferentes abordagens para aprender algo que o autor ainda não dominou". Um pouco de rigor seletivo transformaria "Polemas Intactos num bom livro de estréia.
As informações que o livro traz sobre o autor dizem que o paulistano Celso Nogueira resolveu mudar de mala e cuia para Ubatuba, onde vive desde 1987. Além de tradutor -traduziu Anthony Burgess e Doctorow-, edita "Igarati, revista local de cultura e o "Guia do Litoral Norte.
Porém, são referências desnecessárias. "Polemas Intactos, em seus melhores momentos, é autobiográfico. Os temas, mais do que o contorno de uma vida, sugerem uma vivência do litoral norte de São Paulo: "Porto de São Sebastião, "Noite de Caraguá, "Congada de Ilhabela ou "Festa do Divino em Paraty. Até a sexualidade parece subir e descer a serra, é tensão flutuante: "Lembra, "Nos Andes, "As Feliz ou "Sucessão dos Vikings. E esta se desdobra no tema do casamento: "João e Maria, "Casais e "Nós Dois. Todos eles temperados por um motivo recorrente: as imagens culinárias. Celso Nogueira se diz um cozinheiro diletante. Como poeta, soube meter a colher nos polemas.

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