São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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MEMÓRIAS DO CORONEL

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aos 75 anos, completados em 11 de janeiro último, Jarbas Passarinho resolveu escrever suas memórias. O livro, que ainda está sendo feito e deve sair até novembro, revive passo a passo os anos do regime militar. A Folha publica em primeira mão dois trechos do livro que tratam dos bastidores do regime (leia nesta página e à pág. 5-7).
Passarinho não só foi ministro em três dos cinco governos militares como continua sendo um dos principais ideólogos e defensores do movimento que depôs em 1964 João Goulart (1918-1976) e caducou em 1984, quando o Colégio Eleitoral elegeu Tancredo Neves (1910-1985).
Atualmente sem mandato, depois de perder a eleição ao governo do Pará, no ano passado, Passarinho divide seu tempo entre a CNI (Confederação Nacional das Indústrias), onde é assessor técnico da presidência, e a sua casa, na asa Norte de Brasília. Avesso ao computador, o ex-ministro escreve suas memórias à máquina, trancado todas as tardes na biblioteca.
Esta semana, começou a tratar do governo de Emílio Garrastazu Médici (entre 1969 e 1974), tido como o período mais negro do ciclo militar, quando a repressão à guerrilha e a tortura contra presos políticos atingiram seu ponto crítico. Passarinho era ministro da Educação.
Na entrevista que concedeu à Folha, em sua sala na CNI, o ex-ministro defendeu Médici e não poupou críticas aos castellistas, como são chamados os militares fiéis a Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro presidente do regime militar. Eles voltariam ao poder com Ernesto Geisel (entre 1974 e 1979).
Identificado com o grupo militar fiel aos presidentes Arthur da Costa e Silva (1967-1969) e Médici, Passarinho se refere no livro de maneira muito pouco elogiosa ao general Golbery do Couto e Silva, chefe do Gabinete Civil de Geisel e principal liderança intelectual dos castellistas.
Diz, por exemplo, que na passagem do governo Castello para o governo Costa e Silva, Médici, que iria suceder Golbery na chefia do SNI (Serviço Nacional de Informações), jamais perdoou o estado em que encontrou o órgão de informação do governo. ``Quando Médici chegou ao Planalto, que sediava o SNI, só encontrou uma senhora, secretária, para passar-lhe os encargos. As gavetas, vazias. A desconsideração não poderia ser maior".
Sobre o governo de João Batista Figueiredo (entre 1979 e 1985), quando ocupou nos últimos 14 meses a pasta da Previdência e Assistência Social, Passarinho tem histórias reveladoras.
Diz, por exemplo, que, diante da possibilidade de vir a ser sucedido por Paulo Maluf na Presidência, Figueiredo perdia a cabeça. ``Nesta cadeira, este turco não senta", é a frase de Figueiredo que mais correu à época da sucessão, conta.
O livro deve chegar até o ano de 1993, quando Passarinho presidiu a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre a corrupção no Congresso. Do governo Collor, quando foi ministro da Justiça entre outubro de 1990 e abril de 1992, ele deve relatar episódios que envolvem o atual presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
Um deles, um jantar em sua casa, ainda em 1991, do qual participaram, além de Collor e do anfitrião, apenas os então senadores Albano Franco (PRN) e Fernando Henrique (PSDB). Negociava-se, diz Passarinho, a ida de FHC para a pasta das Relações Exteriores.
O jantar foi descoberto pela imprensa, e Fernando Henrique, fugindo dos jornalistas, ficou escondido em sua casa até que o último fotógrafo fosse embora. Não queria ser visto num encontro secreto com Collor.
Quando relembra essas e outras histórias, Passarinho diz temer que o livro fique grande demais. A idéia original era intitulá-lo ``No Planalto", como sequência ao anterior, ``Na Planície", publicado pela editora Cejup, em 1990. Nele, Passarinho relata sua educação católica, os anos de formação militar e sua trajetória política até chegar ao Ministério do Trabalho e Previdência Social, em 1967. Por insistência da nova editora, Expressão e Cultura, o projeto cresceu e se transformou numa autobiografia, ainda sem título. ``Não quero ultrapassar as 400 páginas", diz.
Ele cita, como exemplo a ser evitado, o livro de memórias de seu amigo Roberto Campos (PPR-RJ), ``Lanterna na Popa", com mais de mil páginas. ``Eu disse ao Roberto que o livro dele é muito pesado, não dá para ler deitado, na cama. Ele me respondeu que isso não é problema, já que na cama a gente faz coisa melhor".

Folha - Comecemos pelo governo Collor. O sr. disse que iria para o Paraguai se ele fosse eleito. Acabou ministro.
Jarbas Passarinho - Por que é que eu fui bater no governo do Collor? Quando veio a primeira pesquisa dando ele em terceiro, o Lula em segundo e o Brizola em primeiro, perguntaram a mim o que eu achava. Respondi mesmo que mudaria para o Paraguai. O Collor então cresceu na pesquisa e fez-se presidente.
Primeiro eu recebi o impacto do discurso de posse. Aquilo me impressionou muito. Depois comecei a acompanhar atitudes de governo na mesma linha. Pensei comigo: a primeira modernização foi com o Castelo (Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro presidente do ciclo militar) e a segunda está sendo agora.
Folha - Como o sr. foi para o governo Collor?
Passarinho - Lembro-me que o general Agenor Homem de Mello (chefe do Gabinete Militar) me pede para ter um encontro com ele em sua residência. Eu fui. Ele disse que as críticas do passado eram coisas superadas e perguntou se eu aceitaria tomar um café da manhã com o presidente. Eu agradeci e disse que não iria. O Fernando Henrique havia ido e saiu de lá debaixo de emissora de TV, rádio. Eu não queria isso.
Para encurtar, ficou combinado que teríamos um encontro reservado, sem que ninguém soubesse. Eu disse ao general Agenor que só tinha uma dúvida: sobre o perfil psicológico do presidente. Tivemos um encontro, e percebi que o Collor era uma pessoa muito sedutora. Eu soltava uma piada ele gargalhava, foi-me conquistando.
Em seguida, tivemos um outro encontro, já com a presença de vários políticos. Já era uma preparação para que substituísse o José Inácio como líder do governo. Nisso surgiu o episódio do dentista, do Bernardo Cabral (primeiro ministro da Justiça de Collor). Ele foi ao dentista e não voltou (risos). Então o general Agenor me telefona e diz que estava autorizado pelo presidente a convidar-me com a maior alegria para qualquer dos dois lugares: ou a liderança do Senado ou o Ministério da Justiça. Pensando bem, acho que o episódio do dentista foi posterior. Mas já havia alguma coisa com a Zélia que levou à queda do Cabral.
Folha - Foi o sr. que convidou o Marcílio Marques Moreira para substituir a Zélia, não foi?
Passarinho - Foi. Telefonei para ele em Washington. Estava do lado do Collor e ele mandou eu dizer que estava no Ministério da Justiça, para não comprometê-lo. Foi assim que fiz quando convidei o Serra (José Serra, atual ministro do Planejamento) para substituir a Zélia.
Folha - Como foi o convite?
Passarinho - Peguei um avião aqui em Brasília, às 11 horas da noite, um avião da FAB (Força Aérea Brasileira). Fui bater na casa do Serra, em São Paulo, quase às duas da madrugada. Ele ainda estava numa festa de aniversário, chegou depois de mim. Eu sabia que a missão era delicada, mudar ministro da Fazenda mexe com tudo, dá repercussão em bolsa etc. O Collor queria o Serra.
Folha - Mas o PSDB estava na oposição.
Passarinho - Estava, mas o Collor sempre tentou atrair. O Fernando Henrique jantou na minha casa. Fernando com Fernando, o Albano (Franco, então senador pelo PRN, partido de Collor) e eu. O Collor tentando atrair o Fernando e o Fernando querendo vir para ministro das Relações Exteriores.
Folha - Quando isso?
Passarinho - Foi antes da saída da Zélia. Tanto que a história vazou e o Fernando Henrique ficou numa angústia danada. Enquanto eu saía com o Collor e o Albano para despistar a imprensa, o Fernando Henrique ficou em casa, escondido. Esperou lá até não haver mais possibilidade de um fotógrafo estar em frente de casa.
Folha - E o caso do Serra?
Passarinho - Ele chegou, falei com ele, e ele começou a ficar no muro. Disse que tinha que consultar o partido. Eu disse que ele era um dos nomes que estavam sendo consultados. Era o nome da minha preferência. Eu então disse a ele que tinha que sair de São Paulo, hoje, naquela madrugada, com a resposta. Ele disse que só poderia responder depois de ouvir o partido. Eu disse, então: ``Muito obrigado", e nos despedimos.
Folha - E depois?
Passarinho - Fui então atrás do Mindlin (empresário José Mindlin, da Metal Leve). Dormi no quartel do Segundo Exército, incógnito. Fui ao Mindlin, às seis da manhã. Ele me recebeu na sala dele, cheia de livros, e disse que não poderia pensar nisso, que já tinha muita idade. Perguntei a ele quem ele indicava e ele citou o Marcílio. Cheguei de volta em Brasília, falei com o presidente. Ele me disse que ligasse para Washington e convidasse o Marcílio. Falei, ele hesitou e perguntou quanto tempo tinha para dar a resposta. Vinte segundos, eu falei. Ele riu e pediu uma hora. Passado o prazo ele me deu o sim.
Folha - Durante o tempo em que o sr. esteve no governo, nunca viu Paulo César Farias?
Passarinho - Nunca. Falava-se nesse PC. Havia boatos de que o caixa dois tinha chegado a um milhão de dólares, mas eram boatos. Volta e meia, vinha algum jornalista e falava, mas nunca o vi. Só fui vê-lo na CPI do Orçamento.
Folha - O sr. é contra a indenização dos familiares de pessoas que foram mortas pelo regime militar?
Passarinho - A minha é uma posição intermediária. Posição radical tem o Erasmo Dias, que acha que não deve publicar lista nenhuma de desaparecidos nem pagar ninguém. Mas uma parte desse radicalismo do Erasmo tem sua razão de ser. Por exemplo, quando você pensa nos guardas de segurança dos bancos que foram mortos pelos guerrilheiros. E os seguranças dos embaixadores, que também foram mortos? Então...

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