São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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``Você está enganado, Castello é comunista"

JARBAS PASSARINHO

A escolha do general Costa e Silva foi precedida de desinteligências na cúpula militar responsável pelo movimento de março de 64. O presidente Castello não se mostrava muito simpático à indicação do seu colega, então ministro da Guerra, o general mais antigo no serviço ativo.
Eu governava o Pará e não tinha conhecimento preciso do que se passava "na Corte. Em outubro de 1965, o governador Carlos Lacerda, apoiado pelo grupo da chamada "linha dura do Exército, ameaçava sublevar a Vila Militar, no Rio de Janeiro. Ney Braga, no Paraná, e eu, no Pará, havíamos elegido nossos candidatos a governador, por larga margem de votos. Fomos chamados ao Rio. Injunções do governo levaram-me a falar em programas de televisão muito vistos na época, um de Heron Domingues e outro de Sargentelli, para mostrar que a Revolução não havia sido derrotada no Brasil, nada obstante o malogro no Rio e em Minas Gerais.
A tese que sustentávamos era que, nesses Estados, a derrota deveria ser debitada aos governadores Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, por não terem tido liderança suficiente para eleger seus candidatos. Lembro-me de ter sido entrevistado por 50 minutos por Heron e outros tantos por Sargentelli, que ficaria meu amigo até hoje. Eu, inexperiente, não tinha idéia do que representava esse tempo em televisão. Claro que, se a entrevista não estivesse servindo ao propósito do governo Castello, o tempo teria sido drasticamente reduzido. Ademais, Ney Braga e eu éramos oficiais do Exército, eu ainda na ativa. Fizemos o que em artilharia se usa chamar de "contrapreparação preventiva.
Disso, tive a prova imediatamente. Colegas meus, de farda, contemporâneos uns e camaradas de mesma turma outros, todos com participação importante no desencadeamento do que chamo de contra-revolução de 64, procuraram-me, altas horas da noite, no hotel Serrador, no qual me hospedara. Disseram-me terem sido obstruídos os canais de comunicação deles com o presidente Castello. Pediram-me para retardar meu retorno ao Pará, obter audiência com o presidente em Brasília e levar-lhe uma mensagem: se o presidente impedisse a posse do dr. Negrão de Lima, no Rio, e do dr. Israel Pinheiro, em Minas, eles poriam a tropa da Vila Militar nas ruas, para apoiar a decisão, e reconheceriam a liderança do presidente Castello, a quem se submeteriam. O clima era de tal exaltação que, em certo momento, um coronel, tomado de indignação com a possibilidade de os dois vitoriosos assumirem, exclamou, diante de minha defesa do presidente:
- Passarinho, você está enganado. Castello é comunista.
Estavam presentes o meu amigo coronel aviador Newton Burlamaqui Barreira e o deputado federal pelo Pará, Gilberto Azevedo, que fora o intermediário do encontro.
No dia seguinte, fui ao Palácio das Laranjeiras. Recebido pelo general Ernesto Geisel, chefe do gabinete militar, por seu intermédio obtive a audiência.
Era noite, quando cheguei ao Palácio do Alvorada. Fui recebido pelo presidente Castello em seus aposentos. Começou por brincar comigo, dizendo:
- Desta vez, você passou por baixo da mesa.
Referia-se à hora tardia em que eu chegava. Ouviu-me com atenção, mostrando sinal de desconforto e, ao cabo, declarou-me:
- Você sabe por que sou a favor da posse dos eleitos?
Fez uma pausa e continuou:
- Porque sou a favor da posse de todos os eleitos. Fizemos uma eleição. Respeito a vontade popular. Você lerá nos muros pichados: "Castello, macaco ditador. Não mereço a ofensa.
Em seguida, avançou:
- Você não me disse quem são esses oficiais.
Ao que respondi:
- Presidente, poupe-me de uma delação.
Ele ficou sério e acrescentou:
- Não precisa. Eu sei bem quem são eles. São os mesmos que se arrogam o direito de guardiães da Revolução. Os moços da "linha dura, que deviam estar nos quartéis, tratando de instruir a tropa. Outro dia, um coronel, que foi meu aluno, veio até a mim para fazer observações sobre os rumos do governo. Cortei-lhe a palavra, perguntando-lhe se os seus soldados já haviam recebido a segunda distribuição anual de borzeguins. Eu sabia que, na unidade que ele comandava, isso ainda não tinha sido feito. Veja só quem se atribui o direito de crítica, ainda que feita sob a ressalva do respeito.
Agradeci e fiz menção de retirar-me, mas ele me deteve. Usando um pequeno bloco de notas, escreveu estes nomes, na sequência, precedidos de 31 de janeiro de 1966:
- Juracy Magalhães
- Cordeiro de Faria
- Bizarria Mamede
- Costa e Silva
E me perguntou, para imensa surpresa minha:
- Qual destes nomes parece o melhor para suceder-me, já que, infelizmente, não é possível escolher um civil?
Comecei estranhando a data. Disse-lhe que o mandato dele não se esgotaria em 31 de janeiro de 66, mas de 67. Ao que o presidente me respondeu, peremptório:
- Não jurei obedecer senão ao Ato Institucional e à Constituição, e não à prorrogação do meu mandato, que em nenhum momento pleiteei.
Surpreso embora, já que ele me dava a honra de poder opinar, comecei audaciosamente a dizer que os dois primeiros nomes, nada obstante o enorme valor de cada um deles, me pareciam inadequados. Chocado, interrompeu-me pedindo explicações.
Calmamente, redargui:
- Presidente, o senhor me comandou na Escola de Estado Maior. Reunia-nos, a nós, seus alunos, em aula magna no auditório, e fazia da sua pregação uma constante, dizendo que era incompatível a vida militar da ativa com a atividade política, sem o que o Exército se transformaria em milícia armada, envolvido no sectarismo partidário. Ambos os generais que encabeçam a lista fizeram a carreira militar ao lado da carreira política. Apenas por isso, eu achava que seria uma incoerência a indicação de qualquer deles.
O presidente deve ter-me perdoado a audácia, pois encerrou a audiência privada, dizendo-me:
- Quanto à proposta desses oficiais impertinentes, ainda bem que você iniciou dizendo que era mero portador, mas que também não concordava com ela. Complete sua passagem por Brasília e vá procurar o senador Krieger, líder do governo, e pergunte-lhe o que pensa.
Chovia, quando o presidente Castello levou-me pessoalmente à garagem do Palácio do Alvorada, despedindo-me com esta frase:
- Vou lhe dar um conselho asiático: preocupe-se, mas não muito.

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