São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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MEMÓRIAS DO CORONEL

Folha - Mas, no caso dos desaparecidos, são supostamente crimes do Estado brasileiro...
Passarinho - Na verdade, não foram iniciativas do Estado. O Estado respondeu à agressão armada. Era uma guerra civil não declarada.
Folha - Quando o sr. tomou conhecimento de que havia tortura contra presos políticos no Brasil?
Passarinho - Foi já no governo Médici. Houve dois casos de que me lembro. Um de uma moça, não me lembro o nome, que era bancária e estudante da Universidade de Brasília (UnB). Ela estava na esquerda, mas não era terrorista. Fazia panfletagem, essas coisas. Foi presa e levada para um posto de investigação criminal. Antes de ser ouvida, chega um grupo de presos, supostamente guerrilheiros, dispostos a fazer sequestros em Brasília. Então, naquela confusão, a moça acabou indo junto com o grupo. No interrogatório, ela ia dizendo que não sabia de nada e, daí, deram um choque nas orelhas dela. Ela entrou em convulsão, porque tinha uma arritmia cerebral.
Folha - O sr. relatou esse caso numa carta ao presidente Médici, datada de março de 1971 e publicada no ano passado pela Folha.
Passarinho - Exatamente. Conto também um episódio, quando, num programa de TV, o repórter me perguntou se existia tortura. Eu disse a ele: ``Acho que existe, sim, mas não como política de governo e, sim, como deformação pessoal de quem investiga". Quando isso foi publicado, criou-se uma resistência muito grande dentro do governo contra mim, especialmente na chefia do SNI (Serviço Nacional de Informações), imaginando que eu teria dito o que não devia.
O que aconteceu foi que o Médici assumiu o governo no auge da luta armada. Lembro-me quando, em 71, o major José Júlio Martinez foi assassinado estupidamente, quando fazia uma ação contra um aparelho de esquerda.
O Médici, quando soube, perguntou: ``Escuta, mas só estão matando do nosso lado?". Essa frase correu dentro do governo. A partir daí, ele descentralizou as ações. Cada grupo de área era responsável pela pronta resposta às ações armadas.
Folha - Mas houve atentados e perseguição a pessoas que não pregavam ou praticavam a luta armada. Por exemplo, um atentado ao Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), onde trabalhava o atual presidente, Fernando Henrique.
Passarinho - Esse pessoal, como meu amigo Fernando Henrique, Serra, que é meu amigo também, merecem bem a frase do Delfim (Netto). Saíram do país todos com passaporte e bagagem. O Fernando foi aposentado da universidade, mas nunca teve os direitos políticos cassados. Tanto que foi candidato antes mesmo da anistia.
Folha - E a sua declaração ao assinar o texto do AI-5, mandando às favas os escrúpulos de consciência?
Passarinho - Pois é. Eu estou esperando que publiquem a fita inteira, um dia. O Golbery (do Couto e Silva) passou a gravação para algum colega seu da imprensa querendo agradá-lo.
Folha - Elio Gaspari?
Passarinho - É, suponho que a única cópia esteja com ele.
Folha - Não existe outra cópia.
Passarinho - Não, nenhum de nós do governo teve isso. Era um documento secreto, um segredo de Estado do Conselho de Segurança Nacional, cujo secretário era o general-chefe do gabinete militar.
Folha - Jayme Portela.
Passarinho - Isso. Só que, depois que o Geisel assumiu, o Golbery teve acesso aos documentos, pegou a fita e passou adiante. Agora, sou eu que pago por uma atitude a qual nunca reneguei e explico as condições.
Folha - O que o sr. lembra daquele dia 13 de dezembro?
Passarinho - Ficam dizendo que o Pedro Aleixo não assinou o AI-5. Não assinou nem deveria assinar. Vice-presidente não referenda ato do presidente, quem referenda são os ministros. O Hélio Beltrão (ministro chefe do Gabinete Civil) falou sobre o pai dele, que era da UDN, liberal, não sei o quê. Eu fui o único que tive a sinceridade de dizer: ``Vamos entrar na ditadura". Nenhum falou ditadura antes. E quando falei nos escrúpulos de consciência, eram os meus escrúpulos, porque entrei num movimento em favor da democracia, que julgava ameaçada.
Naquele momento, minha posição era de lealdade ao presidente. E você vai ver no meu livro como o Costa e Silva pedia para defender pessoas da cassação. Essa história do AI-5 tem que ser reescrita. É claro que houve erros. Mas em massa, não.
Folha - O sr. está ressentido?
Passarinho - Não, não é isso. É que tem duas coisas que eu nunca consegui entender. Nunca entendi o intelectual comunista. Não posso entender o sujeito que fala em nome da liberdade e não vê um monstro como o Stalin. Nunca entrou na minha cabeça como é possível isso. A segunda coisa é esse maniqueísmo com que vêem a revolução. De um lado está o bem, do outro o mal. Hoje você defender o Médici, como eu tive a coragem de defender, nossa, meu Deus do céu, sai de baixo.
O Geisel recebeu o governo adubado para fazer o que fez. Quando o Médici passou o governo a ele, a guerrilha estava acabada. Essa história de que o Médici foi o linha dura e o Geisel o responsável pela abertura é simplista e injusta com o Médici. Se o Geisel tivesse sido presidente no período em que o Médici foi, ele não poderia falar em abertura, estaria debaixo de uma declaração de guerra.
Folha - Mas em 1975 houve a morte de Vladimir Herzog.
Passarinho - Houve coisas isoladas. Mas isso é como aquilo que os economistas chamam de inflação inercial. Era uma contra-insurreição inercial.
Folha - O sr. chegou a ser cogitado para assumir a presidência, substituindo o Costa e Silva?
Passarinho - Quando o Costa e Silva ficou invalidado, houve uma reunião do Alto Comando, onde foi levantado o meu nome para substituí-lo. Foi o Médici que sugeriu meu nome. O Orlando Geisel, que era na época chefe do EMFA (Estado Maior das Forças Armadas), voltou-se para o Médici e disse, com aquele jeitão dele: ``Gosto muito do Passarinho, mas não faço continência para coronel". A questão morreu ali. O Médici acabou aceitando, contra a vontade dele. A família não queria de jeito nenhum. Ele tinha um problema cardíaco.
Folha - Durante a época mais dura do regime militar, o sr. tinha medo de sequestro?
Passarinho - Eu fui o último dos ministros a andar com segurança, uma imprudência muito grande. Uma vez, já ministro da Educação, cheguei ao Recife e encontrei lá uma parafernália de seguranças. ``Mas o que que há", perguntei. Disseram que estava previsto meu sequestro ali, naquele dia. A partir dali, a segurança foi obrigatória. Eu passei a mudar a rotina. Fazia caminhos alternativos. Mas você sabe que o nosso Oscar Niemeyer nos colocou aqui em Brasília todos prisioneiros. Você só entra numa superquadra por um único lugar.
O que eu fazia? Parava o carro longe de casa e ia a pé, entrava pelos fundos. Variava o tempo todo. Um dia me deu na telha testar a segurança que estava me sendo dada. Eu tinha um camarada com uma metralhadora e mais três, com o motorista. Fomos então, um dia, atirar no lugar de treinamento da Polícia Federal. Para minha surpresa, o único que acertou o alvo móvel fui eu. Eu disse a eles: ``Mas sou eu que estou dando segurança a vocês". Eles não tinham dinheiro para treinar o tiro.
Folha - O que o sr. fez?
Passarinho - Passei a andar com minha pistola 45 dentro do carro, na bolsa da porta, ao meu lado. Andava com ela já alimentada e travada. Qualquer coisa, era só destravar e atirar. O SNI nos mandava sempre informações, dizendo: ``Iminente a possibilidade de sequestro, iminente a possibilidade de sequestro". Eu falei um dia ao Médici: ``Presidente, se houver alguma tentativa de sequestro contra mim, vou reagir. E, se eu for sequestrado, não negocie. Nós estamos numa guerra. E guerra é guerra". Em suma, não era um ambiente no qual você podia se considerar um ministro alegre na função que exercia. Eu penei muito nessa época.
Folha - O seu nome voltou a ser cogitado na sucessão do presidente João Batista Figueiredo, não foi?
Passarinho - Foi. Eram quatro os candidatos cotados para suceder o Figueiredo. O Aureliano Chaves, então vice-presidente, o Marco Maciel, o Paulo Maluf e o Mário Andreazza. O Aureliano um dia me chamou para um almoço no Jaburu. Foi um encontro longo. O Aureliano disse que ele e o Maciel abririam mão das suas candidaturas para me apoiar. E completou: ``O Andreazza vai nos acompanhar, inevitavelmente. Quanto ao Maluf, ele não dura 15 dias". Eu disse: ``Olha, Aureliano, você está enganado. Este é um obstinado". Ele disse que, de qualquer forma, a decisão passava pelo Figueiredo. O fato é que o Figueiredo nunca tocou no assunto e, daí, eu deduzo que ele não queria meu nome. Os dois, Aureliano e Maciel, retiraram a candidatura e ficaram só o Andreazza e o Maluf. Nos contavam a história de que o Figueiredo dizia sempre: ``Nesta cadeira, este turco não senta", referindo-se ao Maluf. Eu não sei, mas são coisas que correm como verdade.
Folha - Mas o sr. queria a Presidência?
Passarinho - Confesso que eu não tinha grande atração, não. Convivi com os outros presidentes e vi o desconforto deles todos. Achava que aquilo realmente seria um problema. Hoje dou graças a Deus.

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