São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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O público não-estatal

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

No mundo globalizado e competitivo em que vivemos é frequente imaginar que só existe espaço para expansão das atividades privadas. Essa visão, entretanto, só será verdadeira se confundirmos a esfera pública com a estatal.
De fato, o papel do Estado, enquanto produtor de bens e prestador de serviços, está sendo reduzido dada a crise fiscal e a ineficiência da administração pública burocrática. Em contrapartida, porém, as organizações públicas não-estatais só tendem a crescer.
Primeiro, porque podem ser tão eficientes quanto as empresas privadas. Segundo, porque são uma forma de propriedade mais adequada para uma série de atividades, como a educação superior, a pesquisa científica e a cultura, que envolvem direitos fundamentais e produzem amplas economias externas (que extravasam o âmbito da organização que as produz, não podendo ser vendidas e transformadas em lucros). Terceiro, porque, devido ao controle social a que estão submetidas, são mais compatíveis com o regime democrático.
Nesses últimos 200 anos a democracia não deixou de avançar, com apoio tanto da esquerda quanto da direita. Enquanto a direita defendia a liberdade e a democracia em nome da ordem, a esquerda fazia o mesmo em nome da justiça social. Mas ambas perceberam que, sem a democracia, nem a ordem nem a justiça são mais possíveis.
No mundo pré-capitalista, no qual o excedente era sempre apropriado pela força, a justiça social era impossível e a ordem, uma possibilidade precária. No mundo capitalista a democracia tornou-se possível. E, logo em seguida, necessária, na medida em que se torna uma exigência da grande maioria.
Em consequência, a legitimidade dos governos e da própria ordem social passou a depender da vigência do regime democrático. Esse fato atraiu os conservadores. Da mesma forma, o progresso da justiça social depende agora do avanço da democracia. Por isso, o apoio dos setores progressistas. E daí o consenso em relação ao ideal democrático, traduzido em um crescente controle da sociedade civil sobre o Estado.
É verdade que se continua a falar na ``autonomia relativa" do Estado, usualmente identificada com o relativo insulamento dos governos em relação ao populismo atribuído aos políticos. Nessa versão, a autonomia relativa transformou-se em um ideal aparentemente racionalizador, na medida em que seria um fator de maior governabilidade.
Em última análise, porém, a autonomia do Estado não passa de um ideal antidemocrático, que sempre tentou a esquerda burocrática. Mais recentemente, vem sendo defendido pela direita do consenso de Washington, em nome do ajuste fiscal e das reformas econômicas.
Na verdade, governabilidade não depende da autonomia da burocracia, mas do apoio que os governos obtêm da sociedade civil. A governabilidade nas sociedades capitalistas contemporâneas é hoje garantida pela democracia, pelo controle da sociedade sobre o Estado.
Esse controle realiza-se de diversas maneiras. A primeira e mais importante é o sistema eleitoral democrático. Fundamental, também, é o acesso de todas as correntes políticas aos meios de comunicação a baixo custo. Mas uma forma que se torna cada dia mais importante é o controle social direto da sociedade sobre as atividades públicas que, ao contrário do que se supõe, são mais amplas do que as ações estatais.
Conforme observou com muita propriedade Tarso Genro, em um artigo nesta página (18/7), o mundo globalizado da terceira revolução tecnológica exige que se pense em ``uma nova identidade para o `público', que se confunde cada vez menos com o estatal... Ao não compreender esses fatos estruturais, abdicamos de propor alternativas de controle público não-estatal como respostas de fundo ao privatismo triunfante".
Essa incompreensão suicida está presente na reação de setores estatizantes das universidades federais, incapazes de distinguir o público não-estatal do privado. O que se propõe é uma autonomia radicalmente maior para as universidades em troca de uma maior responsabilidade de seus dirigentes e de um maior controle social pelas comunidades diretamente atendidas por elas.
E que se transformem, voluntariamente, em organizações públicas não-estatais de um tipo especial: as ``organizações sociais". Através desse mecanismo, será possível garantir o financiamento atual da União e, ao mesmo tempo, obter, através de uma parceria com a sociedade, recursos adicionais para o ensino e a pesquisa.
Essa incompreensão é suicida porque constrange a universidade a se manter administrativamente manietada, ineficiente e cara. Em consequência, a universidade pública não logrará recuperar o apoio social que justifique um maior financiamento por parte do Estado.
E assim continuará a perder espaço, dia-a-dia, para entidades universitárias com fins lucrativos explícitos ou velados. Em 1960, 58,8% dos estudantes universitários estudavam em instituições estatais; em 1990 essa percentagem havia caído para 37,5%.
Alguns professores temem que, ao se transformarem em organizações sociais, as universidades percam o apoio financeiro do Estado. Receio infundado. Dada sua essencialidade, o Estado continuará necessariamente a prestar-lhes seu apoio orçamentário. E o fará com mais firmeza se se tornarem administrativamente mais eficientes e responsáveis.
Por outro lado, o apoio da sociedade civil só tenderá a aumentar, dada a maior parceria com a sociedade e o controle social direto através dos conselhos de administração -dois princípios que estão no cerne do conceito das organizações públicas não-estatais.
Em síntese, dada sua maior flexibilidade e eficiência, dada a parceria que implica entre Estado e sociedade, dado seu caráter intrinsecamente democrático, existe um amplo espaço de expansão para o setor público não-estatal nas sociedades contemporâneas. Um espaço que as universidades perderão se não aproveitarem a oportunidade que será oferecida pelo projeto das organizações sociais.

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