São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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Que fizeste de teu irmão?

FÁBIO KONDER COMPARATO

A questão dos desaparecidos políticos durante o regime militar está na ordem do dia e é mérito do atual governo ter tomado a iniciativa de procurar resolvê-la. Mas a solução encaminhada está, infelizmente, muito aquém dos deveres -morais e jurídicos- que o Estado brasileiro assumiu nessa matéria.
Começando pelo lado moral, no universo bíblico a relação do homem para com Deus é inseparável das relações inter-humanas. O relato da rebeldia de Adão e Eva completa-se com o do homicídio de Abel por seu irmão.
No quadro evangélico, essas duas relações se fundem, tornando-se uma só. O juízo final de toda nossa vida diz respeito ao que fizemos ou deixamos de fazer aos pobres, aflitos e injustiçados, que se identificam com o próprio Jesus (Mateus 25, 31-46). Aqui, a interpelação divina dos primórdios -``Que fizeste de teu irmão?"- completa-se com a indagação: ``Por que deixaste de socorrer teu irmão?"
É essa, exatamente, a interpelação que a consciência ética dirige atualmente aos governantes e ao povo brasileiro: que fizemos, até hoje, para reparar a vileza das torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados do regime militar?
Qual a justificativa moral para deixar de apurar os fatos, localizar os cadáveres e nomear os responsáveis? Se passarmos a considerar a questão no plano jurídico, logo reconheceremos que a responsabilidade do Estado pelos crimes praticados é incontestável.
O direito internacional vigente, consubstanciado em várias convenções sobre direitos humanos ratificadas pelo Brasil, em resoluções da Assembléia Geral da ONU e em julgados das Cortes de Justiça, impõe aos Estados em cujo território ocorreram desaparecimentos forçados de opositores políticos três deveres fundamentais: o de investigar os fatos e apurar a verdade sobre as circunstâncias dos desaparecimentos, com a identificação dos responsáveis; o dever de indenizar as famílias das vítimas e o dever de punir os culpados.
Tem-se afirmado que o Estado brasileiro encontra-se dispensado do cumprimento do dever de apurar a verdade e de punir os autores dessas violações de direitos humanos em razão da anistia concedida em 1979. Mas tal afirmação é juridicamente insustentável.
Anistia criminal, como é óbvio, nada tem a ver com o direito fundamental à verdade, reconhecido a todo ser humano em relação a fatos ofensivos à sua pessoa ou à de seus familiares.
Ainda que os criminosos tenham falecido, as vítimas podem e devem exigir -até mesmo para afastar inverdades divulgadas a seu respeito- que se apurem os fatos e se nomeiem os responsáveis. Especificamente nos regimes democráticos, o povo soberano -fonte de todos os poderes- tem o indeclinável direito de saber a verdade sobre crimes cometidos à sombra do Estado.
Mas sobretudo, ao contrário do que se aceitou sem maior exame, a anistia criminal da lei nº 6.683 não alcançou os agentes estatais que torturaram ou assassinaram opositores políticos durante o regime militar.
Em primeiro lugar, esses crimes, que as mais altas instâncias internacionais consideram de extrema gravidade, não podem ser apagados por leis de anistia, sobretudo por anistias votadas sob a égide do regime que propiciou tais horrores. É o que determinam a resolução 47/133 da Assembléia Geral da ONU e a Convenção Interamericana sobre Desaparecimentos Forçados de Pessoas.
A nossa Constituição, de resto, declara que o crime de tortura, objetivamente menos grave que o de desaparecimento forçado de pessoas, é insuscetível de graça e anistia (art. 5º, inciso 43).
Ademais, como tem advertido o professor Goffredo Telles Jr., não pode ser considerado anistiado de determinado crime quem nunca foi oficialmente acusado de sua prática. Ora, nenhum agente estatal do regime militar chegou a ser processado como autor de desaparecimentos forçados de opositores políticos, crime que os governos militares sempre negaram que tivesse sido cometido.
Por último, a lei nº 6.683 concedeu anistia aos autores de crimes políticos ou conexos com estes, cometidos no período compreendido entre 2/9/1961 e 15/8/1979, considerando conexos ``os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política".
Ora, a tortura de presos e o desaparecimento forçado de pessoas nunca foram definidos na lei brasileira como crime político. Tampouco podem esses crimes ser considerados tecnicamente conexos com crimes políticos pela boa razão de que não há no caso um concurso material de delitos nem co-autoria: os crimes imputados aos opositores políticos não foram meio ou instrumento para a prática de tortura ou assassinato de presos, nem os autores de uns e de outros agiram em conluio.
Em suma, se o atual governo decidiu meritoriamente iniciar a tarefa de lavar as manchas deixadas pelo regime militar, não pode parar no meio do caminho. Deve ir até o fim, cumprindo os três deveres fundamentais de todo Estado responsável por tortura, assassinato ou desaparecimento forçado de pessoas:
1) o dever de apurar a verdade dos fatos, constituindo uma comissão de alto nível para investigar com amplos poderes; 2) o dever de indenizar as vítimas ou suas famílias, providenciando imediatamente a ação regressiva contra os responsáveis, diretos e indiretos; 3) o dever de sancionar penalmente os autores desses crimes, representando desde logo ao Ministério Público para a abertura dos competentes processos.
É o que passamos a aguardar.

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