São Paulo, sexta-feira, 18 de agosto de 1995
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FHC revisita Teoria da Dependência

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Depois do caso Banco Econômico, Fernando Henrique bem que poderia renunciar de vez à Presidência.
Que diferença faz? O PSDB sempre teve uma vocação para exercer cargos decorativos. Tanto que os governos anteriores sempre cogitavam tucanos quando queriam fazer alguma reforma ministerial.
O PSDB dá certo polimento ao poder. As coisas se revestem de graça mundana, divertimentos de sobremesa, raciocínios encerados, construções em creme chantilly, licores digestivos, trufas de sociologia, perfumes de Paris.
Mas o tempero de acarajé se mostrou mais forte. Cedo ou tarde, isso tinha de acontecer. Não se brinca com Antônio Carlos Magalhães impunemente. Muito menos se brinca de ser "moderno" com alianças desse tipo. É tão óbvio que até dá vergonha.
O caso teve lances ridículos. Veja-se o ministro Sérgio Motta: sem saber do recuo na intervenção, fez declarações triunfantes a respeito da seriedade do governo FHC. "Acabou a farra do boi no sistema financeiro", declarava o "Jornal da Tarde". Não sem euforia, a esquerda acusa agora o ato estatizante de seus adversários neoliberais.
Quem se saiu bem no episódio foi a repórter do "TJ Brasil", Mônica Waldvogel, que interpelou ACM diretamente. Ele tinha ameaçado fazer denúncias contra dirigentes do Banco Central. Selado o acordo em favor do Econômico, ACM adiou o discurso.
"Fica parecendo que foi uma chantagem", disse a repórter. ACM, imperturbável, respondeu: "Eu não faço chantagem. Se eu fizesse chantagem, iria me parecer com as suas perguntas. E eu não quero me parecer, nem com você, nem com suas perguntas."
Mas se não foi chantagem, o que foi então? E a resposta de ACM a Mônica Waldvogel não foi resposta nenhuma, apenas uma agressão cega, sem espírito, sem humor, sem inteligência.
E aí entramos num ponto interessante, que é o do estilo no exercício do poder. FHC e ACM ao menos diferem nisso.
Fernando Henrique está obrigado a um estilo mais brilhante e charmoso. Mesmo quando fica "bravo" com algumas perguntas de repórter, mantém um esforço didático de persuasão. FHC é arrogante; mas a arrogância, filha da vaidade, supõe ainda algum cuidado face ao que o outro possa pensar.
No caso de ACM, temos a velha prepotência senhorial. Qualquer coisa que ele faça ou diga não importa, não há imagem pela qual zele. Tudo se resume a um "cala a boca", a um "quem manda aqui sou eu", ao hábito de não dar maiores satisfações.
ACM nem precisa mostrar braveza. Caminha impávido, monumental, "naviguant de tout son corps énorme", como dizia Proust do barão de Charlus: consciente da própria institucionalidade. Afinal, o filho dele é presidente da Câmara dos Deputados, pode adiar as reformas modernizadoras.
Curioso embrulho de modernização e nobiliarquia, de hereditariedade e ordem competitiva, de mandonismo e abertura econômica, de chantagem e privatização.
Tento explicar um pouco o que acontece. Fernando Henrique foi "thatcheriano" com os petroleiros, por exemplo. Apesar das recusas oficiais ao rótulo de neoliberal, era disso que se tratava. Mas o neoliberalismo brasileiro, como tudo, tem suas distorções evidentes.
Quando Margaret Thatcher assumiu o poder, dedicou-se a destruir uma ordem econômica que tinha sido feita pelo Partido Trabalhista.
Significava acabar com o poder dos sindicatos, acabar com empresas estatais, acabar com os gastos sociais do governo.
O thatcherismo brasileiro é completamente diferente. Não surgiu de uma clara alternância de poder. Ao contrário, são os mesmos ACM, Delfim, Galvêas, Reis Velloso que sustentam, agora, a necessidade de privatizar o que eles próprios estatizaram. O poder não mudou de mãos. A direita, que aqui foi estatizante, agora é privatista e neoliberal.
E, como nenhum "welfare state" havia sido construído durante o regime militar, o pouco que havia de aparato público é dizimado numa retórica social-democrata.
"Queremos um Estado que realmente funcione, que seja ágil e promova a luta contra a miséria...; enquanto vai dinheiro para os rombos do Econômico, o plano é reduzir os benefícios ridículos da Previdência.
O ódio aos sindicatos continua. É o elo de aliança entre o regime militar e o governo FHC.
Torna-se difícil, de qualquer modo, promover uma legítima reforma neoliberal.
Na Inglaterra, era comparativamente mais fácil; pelo menos no campo argumentativo e ideológico. Tratava-se de uma ruptura com o status quo. Mas no Brasil não houve ruptura, a começar do aspecto político. Não foram liberais enraivecidos, direitistas extremados que promoveram a democratização. A direita já estava no Estado.
O que se fez, desde Figueiredo e Sarney, foi abrir os cargos de responsabilidade pública aos setores oposicionistas. A oposição se fez mais responsável e prudente nesse processo. FHC foi cooptado por ACM, como poderia ter sido por Collor -e até queria.
Tudo se fez em nome da modernidade. Mas aí nossos "modernos", nossos "sofisticados" pagam o preço de sua arrogante inocência.
Acreditaram num neoliberalismo para inglês ver. Ou seja, um neoliberalismo que funciona contra sindicatos e gastos sociais, que funciona para fazer os negócios da privatizacão, mas que não funciona quando um banco regional precisa ser socorrido pelo governo.
O caso Econômico é apenas um detalhe. O importante é que não há reformas constitucionais "modernas" que não tenham de ser feitas sem concessões aos setores "antigos". Cada atitude neoliberal do governo é paga em aumento da fisiologia.
Pouco importa, aliás. Os centros de decisão internacionais não estão minimamente interessados em fazer do Brasil um país "moderno". Querem apenas que o país se conforme à situação que sempre teve, de provedor de mão-de-obra barata, sem grandes convulsões políticas, ágil na transição da cana para o café, do café para a soja, da soja para o aço ou os calçados.
O chato da industrialização é que diminui justamente essa agilidade: não se desfazem as fábricas de sapato com a mesma facilidade com que se muda o produto plantado na terra. Nada melhor do que desindustrializar o país.
A famosa inserção do Brasil no mundo moderno depende apenas de uma coisa: manter o nosso mercado consumidor de produtos estrangeiros.
Para isso, todo arrocho é válido. Já temos a pior distribuição de renda do mundo. Não faz mal, é até melhor, pois há público consumidor suficiente para comprar carros importados, jet-skis, computadores etc.
Renova-se assim o pacto da modernidade com as oligarquias. Fernando Collor era isso; FHC é uma versão mais tola do processo; Sarney era até mais esquerdizante, talvez porque fosse mais burro.

Denúncias
Outro detalhe: a questão das denúncias que ACM ia fazer e não fez. Foram decisivas, imagino, no recuo do governo.
Mas é claro que o Estado brasileiro, depois de décadas de intervencionismo econômico, produz corrupção como uma bananeira dá cachos de banana.
Novamente: como não houve ruptura na transição para a democracia, os antigos e atuais donos do poder manipulam à vontade as informações de que dispõem.
A despeito do que pretendam os intelectuais, nem privatização, nem moralidade pública, nem neoliberalismo, nem modernidade servem para mudar a estrutura de poder. Servem para esmagar as forças de resistência -por equivocadas que essas estejam também- e para confirmar tudo o que já existe.
Desse modo, a polêmica entre estatismo e privatização não faz muito sentido. Foram duas formas de garantir a acumulação da riqueza privada no Brasil.
Favoreceram a constituição de um esquema de poder que se movimenta com tanta facilidade nas águas do liberalismo quanto nas águas do estatismo.
O importante é massacrar a autonomia da sociedade e manter o populacho reverente aos sinhozinhos. FHC se presta a esse papel, com galas e pompas de primeiro mundo.
Não estou descontente com o caso do Banco Econômico: pôs os tucanos em seu devido lugar. O de associados, de submissos, de marionetes de um esquema bem mais forte. Isso é que é Teoria da Dependência.

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