São Paulo, sexta-feira, 18 de agosto de 1995
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`A Morte a Donzela' diverte discutindo tortura

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: A Morte e a Donzela
Produção: EUA, França, 1994, 103 min.
Direção: Roman Polanski
Elenco: Sigourney Weaver, Ben Kingsley, Stuart Wilson
Onde: a partir de hoje nos cines Ipiranga 2, Top Cine, Eldorado 5, Estação Lumière 1 e Center Iguatemi 1 Morumbi , Ibirapuera e circuito

Em suas entrevistas, Roman Polanski costuma enfatizar o aspecto "diversão" de seu trabalho. O espectador pode perguntar o que há de divertido numa história como a de "A Morte e a Donzela", extraída da peça de Ariel Dorfman.
Ali, em um país latino-americano, Paulina Escobar (Weaver), encontra em sua própria casa o médico Roberto Miranda (Kingsley), que ela acredita tê-la torturado durante o período de governo militar.
Miranda aparece por lá após ter dado carona ao marido de Paulina, Geraldo Escobar (Wilson), quase nomeado presidente de uma comissão de Direitos Humanos.
Paulina, visivelmente perturbada pelos sofrimentos do passado, tortura o médico, que se declara inocente.
É claro, a "diversão" não é evidente, em princípio. Tanto mais que toda a história se passa em uma casa, em "huis-clos", com os três personagens frente a frente o tempo todo: a ex-torturada, convertida em torturadora, o suposto torturador, e o atônito marido.
Há uma infinidade de temas que se infiltram nessa narrativa. Vão desde o horror que cada um leva consigo (por tortura ou não), até a possível necessidade de encerrar ciclos de ódio (movido por lembranças obsessivas), passando pelo que de pior o homem consegue arrancar de si mesmo.
Mas o assunto central é a busca da verdade, sua relatividade e, até, a impossibilidade de encontrá-la. O filme faz circular as "verdades" de cada um. Nenhuma delas se implanta. Mesmo quando todos os sinais de evidência se manifestam, a dúvida surge e só ela se impõe.
Mas é por aí mesmo -no centro de uma questão cujo crescendo se mostra sempre mais angustiante- que a diversão se impõe. Polanski joga com a ambiguidade da situação e extrai de seus atores o máximo de dubiedade. Em particular Ben Kingsley, o eterno Gandhi, o homem que carrega a inocência em sua figura, mas que é acusado de uma infâmia colossal.
Como Polanski é um profissional hábil, consegue também criar uma série de atmosferas conflitantes, jogando com as crenças precárias que o espectador constrói ao longo do filme. Em termos de diversão, é o que há de digno.
No entanto, pode-se ver uma aresta neste edifício tão sólido: é como se toda essa busca da verdade tivesse algo de artificial.
Isso não vem -como seria possível temer- dos atores tão pouco latinos. Nem do fato de o filme ser falado em inglês. Ao contrário, por aí define-se desde logo o tipo de convenção que o filme assume.
Mas nota-se aqui e ali que o sentido de toda a busca precede o filme. O filme apenas a realiza com talento. Porém, ao optar pelo classicismo puro (que alguns dirão paródico) o filme revela seu limite. Mesmo ao tratar da tortura, Polanski não esquece a diversão: prende seu espectador a um código esgotado. De alguma forma é delicioso. De algum modo, atroz.

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