São Paulo, sábado, 19 de agosto de 1995
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João Gilberto foge da gripe e do chavão

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

João Gilberto cantou anteontem mais um tomo da história da música brasileira. O artista baiano de 64 anos inaugurou a casa de espetáculos Tom Brasil num show para convidados.
Violão, voz e euforia foram suficientes para conduzir o público ``vip" ao nirvana. Durante 55 minutos, o cantor abordou 16 músicas. Nem o som péssimo da casa e o público barulhento estragaram o desempenho.
Ter passado horas enrolado num cobertor com pavor de contrair uma gripe fez bem a sua voz. Ela compareceu aveludada e sem as farpas exibidas no último ano em São Paulo. Revelou uma impressionante capacidade de revitalização vocal. Com ótimo humor, atendeu pedidos de músicas e deixou a platéia entoar as mais conhecidas.
Deve repetir o repertório hoje e amanhã. Ignorou o roteiro do diretor do show, Fernando Faro, e exibiu poucas canções novas. Incluiu ``Pra Que Discutir com Madame" (Janet de Almeida-Haroldo Barbosa), que não estava no repertório, e desfiou os clássicos da bossa-nova que ele perpetuou, como ``Desafinado" (Tom Jobim-Newton Mendonça) e ``Chega de Saudade" (Tom-Vinicius de Moraes). Não deixou de mostrar sua versão definitiva de ``Fotografia" (Tom), canção lançada por Sylvia Telles em 1959. Buscou no disco ``Sinfonia do Rio de Janeiro" (Tom Jobim-Billy Blanco), de 1955, o tema de abertura, uma melodia solar e precisa que o cantor iluminou ainda mais.
João trabalha em adágio. Cinzela lentamente melodias perdidas para lhes dar a arte-final e extrair delas o ponto ômega rítmico e harmônico. Só então as apresenta. Desta vez, propôs apenas dois enigmas aos entendedores de MPB: o samba ``Mágoas", composto por Tom Jobim em 1959, e ``Valsa de Quem Não Tem Amor", uma música meio esquecida de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy.
As duas canções ressurgiram com um frescor de supernovas. A primeira nem o filho de Tom, Paulo, conhecia. João se lembrou dela durante os ensaios. Iria gravá-la ainda nos anos 50. Possui harmonia plana e uma letra sintética típica de Tom, também poeta de qualidades.
A valsa foi gravada pelo cantor Nelson Gonçalves em 1945. Era um daqueles fósseis da dor-de-cotovelo até João lhe definir a forma em público.
A questão dos direitos autorais em João Gilberto é das mais ambíguas. A grandeza do cantor está nessas exumações que se tornam obras-primas. Ele aperfeiçoa mesmo composições dadas como esteticamente obsoletas ou irrecuperáveis. Rouba para si a inspiração dos compositores e se converte em proprietário eterno de certas obras. Salva músicas do esquecimento e de seus criadores.
O autor não tem do que reclamar. Exemplo, algumas canções de Ary Barroso -como ``Sandália de Prata" e ``Faixa de Cetim", que apresentou mais uma vez- seriam bem menos essenciais sem a intervenção do intérprete.
João se mostra superior a todos os cantores brasileiros. O fato preocupa. Na platéia, estavam alguns intérpretes que deveriam aprender algo com ele, como Oswaldo Montenegro, Ivan Lins e Toquinho. Mas, se não ensina, João tem pelo menos o poder de calar a mediocridade enquanto canta.

Show: João Gilberto
Quando: Hoje e amanhã, às 21h
Onde: Tom Brasil (r. das Olimpíadas, 66, tel. 011/820-2326, Vila Olímpia)
Quanto: de R$ 35 a R$ 80

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