São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Casos Dallari e Econômico evidenciam confusão entre esferas pública e privada

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Um secretário do governo federal acusado de assessorar a iniciativa privada. Um senador que tenta estatizar um banco privado que vai à bancarrota. Os casos de José Milton Dallari e do Banco Econômico, que sacudiram o país nas duas últimas semanas, trazem à tona um velho problema: a confusão entre as esferas pública e privada na história brasileira.
Desde o período colonial existe no Brasil a tendência à utilização de cargos de poder em benefício particular. Do prefeito do interior que manda asfaltar a rua onde mora ao ministro-empresário que beneficia sua área de atividade, a história do país já assistiu a tantos casos semelhantes que eles passam a ser considerados naturais.
Ouvidos pela Folha, intelectuais brasileiros consideram que o maior perigo é justamente esse: que se passe a considerar ``normal" o uso do poder público em favor de interesses privados.
Para o historiador Luiz Felipe de Alencastro, 48, a tentativa de salvar o Econômico, através de sua estatização pelo governo da Bahia é um exemplo. ``Isso não acontece em países civilizados", diz. E lembra o caso da Baring Brothers, a mais antiga instituição de crédito londrina, que foi à bancarrota ``porque não dispunha de uma soma inferior àquela necessária para tapar o buraco do Econômico" (leia entrevista à pág. 1-12).
Para Roberto Romano, professor de filosofia da Universidade de Campinas (Unicamp), nem se conseguiu estabelecer no país ainda uma esfera propriamente pública: ``Em todos os setores -da universidade ao Exército-, há uma contaminação constante, uma troca entre o público e o privado".
Com outro vocabulário, o antropólogo Roberto Da Matta, professor da Universidade de Notre Dame (EUA), vai pela mesma linha: ``A casa e a rua continuam se misturando".
Para o antropólogo, ainda há no Brasil uma grande dificuldade de estabelecer normas que delimitem claramente essas duas esferas.
A medida visa evitar que indivíduos utilizem em benefício próprio informações privilegiadas que obtiveram graças a seus cargos no governo.
A ``quarentena" parece uma boa solução para o professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Renato Janine Ribeiro, que entretanto faz uma ressalva: ``Para adotar a `quarentena', é necessário que o governo pague um salário compatível ao ex-funcionário nesse período. E a falta de recursos será certamente um argumento contra a medida".
Para o historiador Boris Fausto, também professor da USP, outra coisa que poderia ajudar a superar a atual promiscuidade entre público e privado seria a ``construção de uma burocracia estável, bem preparada e bem remunerada, que independesse dos governos".
O historiador admite que, mesmo assim, ``sobrariam muitos cargos de confiança". Ele também é favorável ao sistema da ``quarentena", mas de maneira ``muito restrita", com a definição precisa das atividades que o indivíduo não pode exercer depois de passar por certos cargos.
``É claro que o sujeito não pode deixar de ser economista ou sociólogo só porque ocupou um cargo de governo", exemplifica.
``É preciso inaugurar outros tipos de costumes políticos, criar um certo padrão", resume Boris Fausto.
Para o historiador, o país caminha nessa direção, embora lentamente. ``A gente esquece o que já se avançou nesse campo. Basta lembrar que, na última campanha presidencial, dois candidatos à vice-presidência foram queimados em função de suspeitas que pesavam sobre eles".
Roberto Romano é menos otimista: ``O que nós temos tido são surtos esporádicos de moralismo, que acabam com a escolha de bodes expiatórios. Sacrificam-se pessoas para a manutenção do sistema".
Para Romano, se existisse ``vontade política", poderiam surgir leis que ajudassem a diminuir o arbítrio e a corrupção.
Roberto Da Matta acredita que este é um momento crucial na história do país: ``A modernização que se está realizando exige que se enfrente o problema. Precisamos discutir e definir as normas e a ética que vamos seguir em nossa política social".
Renato Janine Ribeiro vai além. Para ele, toda a cultura política brasileira tem que se transformar, o que inclui a imprensa.
``Muitas vezes a imprensa sabe o que está acontecendo e se cala. Depois, quando revelam as coisas, os jornais fingem uma surpresa que de fato não existe", diz o professor.
Janine acredita que isso ocorreu no caso do governo Collor. Segundo ele, a imprensa sabia de irregularidades antes de sua divulgação.
``Quando o Janio de Freitas, por exemplo, diz que o caso Dallari é só um entre muitos, é muito provável que ele tenha razão", conclui.

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