São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Levitação de Coelho não reverte balança cultural

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

O sucesso internacional de Paulo Coelho e outras exportações místicas brasileiras ainda é pequeno para reverter o pesado déficit de nossa balança cultural. Continuamos importando muito mais do que exportamos, mas o pouco que lá fora emplacamos está afetando diretamente a economia de outras culturas do continente. Com Paulo Coelho, superamos o México de Carlos Castaneda. Com a disseminação da macumba em Nova York, desbancamos o vodu do Haiti. Com o bispo Macedo, ameaçamos a hegemonia do protestantismo norte-americano.
Ora, dirão que não são coisas genuinamente nossas as levitações do Coelho, os babalaôs da Bahia e os sermões do Macedo. De fato não são, como não é o café (originário da antiga Abissínia), nem o futebol (inventado pelos ingleses), nem a Carmen Miranda (nascida em Portugal).
Não temos culpa se o nosso destino manifesto é aperfeiçoar o que trouxemos de outras terras.
Ainda bem que assim seja, pois inventar nunca foi, mesmo, a nossa. E, quando conseguimos superar essa deficiência, os gringos não nos deram bola nem crédito, o que só serviu para aumentar o nosso proverbial complexo de inferioridade. Ao qual, aliás, nem um patriota do calibre do Otto Lara Resende logrou escapar. A partir de determinado ponto de sua vida, Otto passou a desconfiar que Santos Dumont não havia inventado o avião, apenas o desastre de avião.
As atuais glórias do Brasil no exterior denotam, ainda, uma diversificação em nossa pauta de exportações, até recentemente dominada por produtos mais carnais (carnaval, Sonia Braga, biquíni fio dental, lambada) do que espirituais. Já podemos dizer que nem só a música alimenta o prestígio do Brasil, embora ela continue sendo o produto cultural brasileiro de maior aceitação no mercado mundial.
Começamos com o maxixe e nunca mais deixamos de deslumbrar as platéias de fora. Fusão da habanera com a polca (e um punhado de tempero africano), o maxixe nasceu no Rio de Janeiro, entre 1870 e 1880. É tido como a única dança genuinamente carioca, já que o samba, segundo consta, veio da Bahia. A despeito de sua coreografia complicada (requebro de quadris, voltas, quedas e movimentos de rosca, acompanhados de passos convencionais ou improvisados pelos dançarinos), estourou no Norte, no início do século.
Exportamos vários Fred Astaires e Ginger Rogers do maxixe para clubes noturnos de Nova York e da Europa, na década de 20. Vários fizeram um bom pé-de-meia e ficaram por lá, na esperança de que o futuro lhes fosse igualmente risonho. Não foi. Da última vez em que foi visto, ouvido e dançado, salvo engano no filme ``Voando Para o Rio", em 1933, o maxixe já havia se naturalizado norte-americano, com outro nome (``The Carioca") e um forte sotaque de rumba.
Com a chegada de Carmen Miranda -e a ajuda inestimável da Política de Boa Vizinhança traçada pelo presidente Roosevelt-, o samba (``Aquarela do Brasil"), a marcha (``Mamãe Eu Quero") e o choro (``Tico-Tico no Fubá") desembarcaram em Manhattan e também rumaram para Hollywood, abrindo caminho para contrafações de vários feitios, nem todas cantadas pela ``Brazilian Bombshell", como foi o caso de ``A Little More of Your Amor", falso samba consagrado pelo cucaracho Carlos Ramirez, em meados dos anos 50.
A bossa nova foi a nossa vingança. Os gringos adulteraram o samba; nós adulteramos o jazz. Eles adoraram. Graças à bossa nova, tivemos nosso primeiro superávit cultural. A bossa nova foi o nosso ouro, o nosso café, a nossa cana-de-açúcar, a nossa borracha e a nossa soja musical.

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