São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Com a palavra, o professor

EDUARDO PORTELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

À medida que se avolumam os desafios políticos, econômicos e culturais, as pautas pedagógicas vão sendo inevitavelmente sobrecarregadas. O lugar da educação no conjunto do debate nacional passa a ser lugar tenso, em meio a todo tipo de confronto. Os interesses em jogo se encarregam de ampliar a extensão do litígio. É nesse quadro, provisoriamente resumido, que reflexões como a de Florestan Fernandes se mostram particularmente oportunas.
"Tensões na Educação é antes um livro de combate, que se insurge contra a deterioração do nosso sistema de ensino em seus diferentes níveis. Artigos e entrevistas ditados no calor da hora refletem o dia-a-dia da nossa polêmica educacional e as limitações do trabalho parlamentar no Congresso Nacional. Os textos reunidos chegam a 1992. Nem por isso tornaram-se desatualizados. Três ou quatro anos depois, os mesmos temas permanecem na ordem do dia, é certo que bastante estressados.
Não acredito que a idéia de tensão deva ser recolhida com alguma surpresa. Se levarmos em conta o modelo vigente da inscrição internacional, a urgência da atualização do Estado, a necessidade de reprogramação do social e, se quisermos ir um pouco mais adiante, a desestabilização do saber hegemônico, teremos de admitir a tensão como algo de muito natural. A tensão guardaria a sabedoria da divergência.
Florestan Fernandes preferia confiar no princípio da revolução como divisor de águas e denunciar a "mentalidade capitalista reinante. Ali, no pedestal revolucionário, estaria o remédio para a nação extraviada e para o povo subjugado. Em que pese a lucidez da sua reconstituição do esfacelamento do bloco soviético, ficava faltando uma dose maior de autocrítica na avaliação do espólio do Estado nacional. Tenho a impressão de que, por estas bandas, o Estado nacional imitado perdeu o rumo da história, por ser exclusivamente nacional e excessivamente imitado.
Aqui, o imitado nunca foi delimitado. Procuraram-se resolver essas questões pendentes, esse contencioso persistente, no âmbito global ou no facilitário da modernidade. No limiar do terceiro milênio, ainda nos encontramos às voltas com o legado moderno, sem saber ao certo o que ele possa ter de lição e de mal-entendido. Nem sequer fomos capazes de afastar a falsificação evolucionista, incrustada no corpo do progresso irreversível e de perceber as vias e os desvios que se cruzam irremediavelmente nos caminhos da experiência moderna. Aceitamos a modernidade como um território compacto, único, progressivo e progressista. Sem desconfiar de que a modernidade a qualquer preço viria a se transformar em um campo minado, a ser percorrido perigosamente.
Textos de combate, pela maneira menos intensa de tratar os temas, provocam incompreensões. É o que provavelmente está acontecendo. As indicações provenientes da "autonomia da razão pedagógica ou da "sociedade civil como um todo só pacientemente explicadas poderão deixar de ser vistas como resíduos iluministas, justamente em autor que tanto prezava a distância da "retórica iluminista. Ninguém mais do que os iluministas acreditaram, tão desarvoradamente, na autonomia da razão e no poder do todo, como instâncias privilegiadas da verdade.
Não nos esqueçamos de que Florestan Fernandes era o combatente que pensava, feito extremamente raro. Já não falo na sua obra exemplar, que ocupa um lugar de destaque na histórias das idéias, porém na eventualidade da militância. Daí a vontade de tentar pensar com o seu pensamento.
A cidadania, a lei e o mercado registram altos índices de desentendimento no Brasil. É inevitável que repercutam e multipliquem as tensões do processo educacional. Ou que terminem por desmobilizar o compromisso maior com o desenvolvimento. Pois que de desenvolvimento se trata, e abandonar este termo, como querem alguns nominalistas acirrados, nos conduziria, neste instante, a uma disputa teórica, ou apenas terminológica, de rendimento técnico altamente duvidoso. Isso não implica, de modo algum, absolutizar o conceito de desenvolvimento, vendo nele "o fim da história ou a estação final da felicidade prometida.
A educação ou é cidadã ou simplesmente não é. Em vez do acúmulo mecânico de conhecimentos pontuais, que os diversos formatos de aprendizagem disseminam sem maiores escrúpulos, é o direito de cidade que se impõe prioritariamente. E a partir dele será permitido falar em ordem cidadã, sem que esses dois termos se excluam reciprocamente. Organizar para que e para quem? Esta velha pergunta continua perturbando, em meio à estrita política de resultados, ao planejamento econométrico, ao vazio reflexivo, ao perigo do confinamento normativo.
A democratização da cidadania se depara com resistências graves porque, como afirma Florestan Fernandes no livro, "ainda subsiste uma sociedade civil não-civilizada. O esfacelamento do eixo ético, o descrédito político, o aumento das desigualdades comprometem o pouco que havia de coesão social. A Lei de Diretrizes e Bases e os seus projetos alternativos até hoje não chegaram à confluência produtiva. Vem de longe a tendência ao casuísmo e os desmandos de uma legislação muito mais dissociativa do que associativa. O controle normativo sempre se sobrepôs ao desempenho intelectual. A lei, que deve manter permanentemente abertas as portas da legitimação, antes parece a consolidação de interesses particulares conflitantes.
Fingem ignorar, ela e eles, que inexiste legitimidade sem ampla participação. E assim vão avançando, se não as tensões, ao menos as intenções de uma contabilidade perversa. Em nenhum momento paramos para elaborar indicadores qualitativos, solidamente plantados. Os indicadores quantitativos, uma vez que provêm do mercado, para ele retornam inexoravelmente. Nesse movimento pendular, a singularidade se extravia e a qualidade é esquecida. Os que vêem "na educação escolar uma mercadoria -esses jamais poupados por Florestan Fernandes- subvertem a sequência razoável do ensinar melhor e mais.
Tem nos custado caro a decisão ilusória do desenvolver primeiro, para depois educar. Governantes desaparelhados, alunos desassistidos, professores perplexos, em alguns casos escassos, em outros desestimulados, trafegam na contramão da história. O pré-requisito do desenvolvimento injusto como passagem obrigatória para a qualificação educacional já não comove nem mesmo os corações mais puros. O investimento criterioso, sem avareza e sem desperdício, este sim pode converter-se em elemento rentável no processo mais amplo da estranhamente chamada sustentabilidade.
Tudo isso Florestan Fernandes conhecia e ensinava de cor e salteado. Não há dúvida de que a educação brasileira vive cercada de tensões por todos os lados -tensões endógenas, tensões exógenas, algumas vindas do frio, outras saídas do calor. Tensões, enfim, quase sempre mal temperadas. Mas é o caso de perguntar: a tensão, o choque mesmo, as divergências complementares, não fazem eles parte do processo constitutivo da própria educação?
A resposta, ao que tudo indica, será uma só: certamente. Talvez tenhamos que aprofundar a tarefa prospectiva e, para além da resignação, da lamúria e da cólera, reconstruir alternativas plausíveis. Em um país em que militares, industriais, jornalistas, atletas, economistas emitem sentenças sobre educação, não será despropositado recolher a palavra do professor. Sobretudo de um professor como Florestan Fernandes.

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