São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pesquisador diz que o cérebro é sede da alma

ROBERT WRIGHT
ESPECIAL PARA O ``NYT REVIEW OF BOOKS"

Suponhamos que, só por brincadeira, alguém recobrisse uma das torres do World Trade Center com telas de televisão. Como cada tela tem uns 200 mil pontos luminosos, e cada um deles pode assumir diferentes graus de brilho, o edifício de 500 mil telas teria alto ``poder representacional" -para usar o jargão da inteligência artificial.
Mas não mais que um único cérebro humano, nota Paul M. Churchland em ``Máquina da Razão, Sede da Alma". Ele pede que imaginemos a superfície do edifício luminoso transformado numa folha de papel de alumínio fina o bastante para ser amassada e encaixada dentro de um grapefruit.
O resultado seria o seu cérebro -uma esfera do tamanho de uma fruta com 100 bilhões de pontinhos (neurônios) capazes de assumir diferentes brilhos.
É claro que o cérebro é mais sutil que meio milhão de aparelhos de TV, e Churchland -professor de filosofia na Universidade da Califórnia em San Diego e autor de "Matter and Conscience (Matéria e Consciência)- sabe bem disso (só para dar um exemplo: neurônios influenciam-se mutuamente, pontos luminosos não).
Ele quer deixar claro que o cérebro não é um pedaço de carne comum para prosseguir com seu argumento: os avanços em neurologia e inteligência artificial forçam-nos cada vez mais a levar a sério o materialismo psicológico, isto é, a possibilidade de reduzir toda a vida mental humana, por etérea que pareça, a esse computador biológico que é o cérebro.
Para fazer o leitor pensar de modo mecanicista sobre o pensamento, Churchland narra em detalhes exemplos de inteligência artificial.
Um programa de computador recebe várias imagens de rostos humanos, identificados como ``masculino" ou ``feminino", e é capaz de ``aprender" a diferença e a distinguir o sexo de novas imagens com precisão. Depois de treinamento semelhante, um programa chamado ``Empath" pode discernir estados emocionais em fotos de pessoas, enquanto o ``Face Bender" pode tomar uma imagem de, por exemplo, Ronald Reagan, e fazer uma caricatura passável.
O pensamento humano é algo mais que distinguir rapazes de moças e saber se estão irritados, mas não há como negar o progresso científico. Programas de inteligência artificial têm enfoque análogo à arquitetura do cérebro: trata-se do ``processamento paralelo" em larga escala, em que computações são realizadas simultaneamente (um computador pessoal, ao contrário, faz as coisas em sequência). Valendo-se da perfeição crescente das simulações de inteligência nas ``redes neurais", bem como da neurociência, Churchland produz um argumento plausível, ainda que especulativo, em favor da visão do cérebro como computador.
Até aqui, tudo bem. Mas quase ao fim do livro surgem, como não podia deixar de ser, a questão da ``consciência" e a crença de Churchland de que a neurociência cognitiva acabará por explicá-la.
``Explicar" a consciência pode significar duas coisas. A primeira é que toda a nossa experiência subjetiva é resultado de processos físicos. As mais refinadas variações de ansiedade ou alegria, os atoleiros de perplexidade, os momentos de clareza são todos reflexos de uma computação biológica.
Um segundo tipo de explicação da consciência procuraria responder à questão: Por que, afinal, existe a chamada consciência? Por que a evolução a inventou? O materialismo é frequentemente incapaz de perceber a importância dessa questão -ou até de formulá-la.
Para os materialistas, a consciência está para o cérebro como a sombra está para o corpo que a projeta: um reflexo e nada mais. Podemos sentir calor e ``sentir" que quisemos correr do fogo, mas a verdade é que a informação biológica que registrou o calor disparou uma sequência física de processamento de dados que, por si só, nos compeliu a correr. A experiência subjetiva é causalmente supérflua, uma sombra da ação.
Uma variedade doméstica de materialista psicológico parece-me defensável; na verdade, não consigo imaginar fundamento mais plausível para a ciência do comportamento. Mas, se a consciência de fato não faz nada, então por que existe? Se o processamento de dados estritamente físico basta para manter organismos funcionando, por que surgiu a experiência subjetiva? Por que a evolução criou algo sem função?
Um modo de escapar à questão é adotar um materialismo mais radical, que nega não apenas a relevância causal da consciência, mas até sua existência: a consciência não é produzida por processos físicos, é simplesmente idêntica a esses processos. Churchland parece às vezes inclinar-se a essa posição.
A distinção entre o reino pública e cientificamente observável da realidade objetiva e o reino inerentemente privado da realidade subjetiva foi posta em relevo pelo filósofo Thomas Nagel no ensaio ``Como É Ser Um Morcego?". Ele duvidava que fosse possível responder à questão-título ou resolver o quebra-cabeça da consciência.
Churchland, como aliás a maioria dos materialistas, critica esse ensaio, talvez porque o critério de Nagel tenha um óbvio poder de persuasão, capaz de fazer parecer absurda qualquer tentativa de negar a existência da consciência.
Seu critério não depende da tarefa de tentar responder à questão ``como é ser um morcego -mas sim de saber se a questão tem sentido, isto é, se ``ser um morcego" é comparável a qualquer experiência nossa. De acordo com Nagel, se ``ser uma dada entidade" -você mesmo, por exemplo- é comparável a alguma experiência nossa, então podemos atribuir experiência consciente a essa entidade.
E ``ser uma pessoa" é obviamente um desses casos, ao contrário de, por exemplo, ser uma rocha, um termostato ou um Chevrolet. Assim, parece haver uma propriedade que distingue pessoas das coisas. Chamemo-la consciência ou o que for, mas não se pode negar sua existência, a não ser que se esteja disposto a afirmar que ``ser um Chevrolet" é comparável a alguma experiência, enquanto ``ser uma pessoa" não é. Boa sorte.
Traduzido para a linguagem de Nagel, o enigma da consciência é o seguinte: por que ``ser uma pessoa" é comparável a experiências nossas e ``ser um Chevrolet" não é, se ambas as máquinas poderiam funcionar mesmo que ser como uma delas não fosse comparável a nenhuma experiência subjetiva?
Essa argumentação complica a vida dos materialistas. Ela leva ou à suspeita de que a resposta está além do alcance da ciência, no domínio da metafísica, ou então à dúvida quanto à premissa inicial, que nega qualquer relevância causal à experiência consciente.
Seja como for, o materialismo parece não ter todas as respostas. E, embora Churchland admita não ter certeza da possibilidade de explicar a consciência, ele se junta à tradição materialista de deixar de lado a fonte maior de incerteza.
Mas seria uma pena deixar de considerar os temas importantes que o livro levanta. A discussão de Churchland sobre desordens mentais (emocionais, cognitivas ou sociais) é fascinante, assim como suas idéias sobre como a inteligência artificial pode revolucionar o diagnóstico médico e a pesquisa científica. O autor tem uma noção clara das mudanças que nosso sistema penal poderia sofrer por meio da crescente tecnologia de predição e controle do comportamento.
Depois de esboçar as tendências futuras, Churchland escreve que ``ou seus pêlos se arrepiaram, ou você não está lendo com atenção". Mas, após admitir temores de um controle governamental sobre pensamentos, ele adota um tom esperançoso: suponhamos que, no futuro, um ``mapeamento não-invasivo" do cérebro de um criminoso forneça um perfil interpretável por ``uma rede neural padrão bem-estabelecida, treinada com um banco de dados de perfis semelhantes".
O resultado seria ``uma previsão de futuros distúrbios de comportamento, além de recomendações sobre tratamentos possíveis". Se um dos tratamentos for um ``implante farmacêutico barato", o que haveria de errado em livrar os criminosos da prisão e a sociedade dos custos decorrentes -contanto, é claro, que o criminoso concorde com essa alta tecnologia para a redenção?
Há muitas questões vitais implicadas na afirmação -desde o título do livro- de que o cérebro é a ``máquina biológica da razão" -como aliás da desrazão, do ódio, do amor, do medo e de tudo o mais. Pode até ser que o cérebro, como diz a segunda metade do título, seja a ``sede da alma". Mas, por enquanto, não sabemos nem sequer o que poderia ser essa ``alma". E a ciência dificilmente chegará a nos responder.

ONDE ENCOMENDAR
``The Engine of Reason, The Seat of the Soul - A Philosophical Journey Into the Brain", de Paul M. Churchland (Bradford Books/MIT Press, 239 págs., US$ 29.95, 1995) pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, tel. 011/285-4033, São Paulo)

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

Texto Anterior: FRENOLOGIA; DOMINÂNCIA; CONEXÕES
Próximo Texto: Emoções são parte da mente
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.