São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Emoções são parte da mente

MARIAN STAMP DAWKINS
ESPECIAL PARA A ``NEW SCIENTIST"

Já que todo mundo parece estar fazendo a mesma coisa -isto é, escrevendo sobre a mente e o cérebro-, um livro de alguém tão entendido nas operações do cérebro humano como Antonio Damasio é muito bem-vindo.
Eu supunha que "O Erro de Descartes tentaria mostrar a falácia do dualismo -a idéia de que cérebros e mentes são entidades completamente diferentes.
E, dada a estatura de Damasio como neurocientista, esperava que seu livro versasse sobre as pesquisas recentes sobre partes do cérebro envolvidas em nossas experiências conscientes.
Estava inteiramente enganada quanto à segunda expectativa e só parcialmente correta quanto à primeira.
O "erro do título consiste afinal em tudo aquilo a que Damasio tem objeções nas idéias correntes sobre a mente: "Um emblema para um conjunto de idéias sobre corpo, mente e cérebro que prevaleceram na cultura ocidental.
Como eu havia suposto, seu alvo específico é o dualismo que cinde "mente e "cérebro, mas sua solução para o problema não se limita à simples afirmação de que experiências conscientes derivam de estados cerebrais. A seu ver, as mentes estão embutidas (ele prefere o termo "encarnadas) não apenas no cérebro, mas no corpo inteiro.
Os cérebros teriam evoluído a fim de tomar conta dos corpos, de assegurar sua sobrevivência, monitorando seu estado e dirigindo-os a tomar quaisquer ações necessárias a sua segurança, estabilidade e bom estado de conservação.
Quando acontece qualquer coisa de inconveniente -a chegada de um predador, por exemplo-, ocorre uma complexa interação entre o cérebro e o resto do corpo, que leva a um estado emocional capaz de preparar o corpo para a fuga; como resultado, sentimos medo. Emoções e sentimentos seriam, então, os guardiães dos corpos; curiosamente, diz Damasio, foram deixados de lado pela psicologia cognitiva.
Seu livro é um convite ao tratamento científico dos sentimentos e das emoções, com o argumento de que é impossível compreender inteiramente o funcionamento cerebral simplesmente por meio do estudo das coisas racionais ou inteligentes que os cérebros fazem; é necessário entender que os cérebros estão lá para sentir e avaliar situações em vista do bem do corpo. Damasio afirma enfaticamente que seu livro não trata da consciência, ainda que o tema aflore periodicamente.
Boa parte do livro trata do córtex pré-frontal e de seu papel na vida e na personalidade humanas. Damasio começa o livro com um relato da curiosa história de Phineas Gage, um trabalhador empregado na dinamitação de rochas para a construção de linhas férreas em Vermont.
Em 1848, uma barra de ferro pesada foi projetada por uma explosão através de sua bochecha esquerda, subindo então pela parte frontal do cérebro e saindo pela parte de cima de seu crânio.
Surpreendentemente, Gage não apenas sobreviveu a seu estranho acidente, como parecia inicialmente ter conservado intactas suas faculdades.
Podia falar e mover-se normalmente, e sua memória não parecia afetada. Só mais tarde tornou-se claro que sua personalidade sofrera uma mudança sutil. Era capaz de decidir racionalmente como agir, mas não parecia se importar com o resultado. Já não estavam lá as emoções que pessoas normais associam aos vários acontecimentos da vida.
Damasio descreve ainda outros casos de pacientes seus, todos com danos nos lobos frontais semelhantes aos de Gage e sofrendo da mesma indiferença diante do que lhes acontece.
A partir desses casos, o autor parte para a formulação de sua hipótese do "marcador somático: nas pessoas normais, a tomada racional de decisões seria guiada por seus "sentimentos viscerais diante de um problema. O que o cérebro decide é influenciado por respostas corpóreas (somáticas) como o nojo e o medo.
A vantagem disso em termos de seleção natural está na limitação imposta ao número de respostas possíveis a um problema, antes mesmo que tentemos nos decidir a respeito.
Soluções que pudessem nos levar a situações desagradáveis -como resfriarmos nossos corpos ou andarmos sozinhos no escuro- são excluídas em bloco, de modo que possamos nos ocupar com um subconjunto de soluções associadas a estados emocionais muito mais agradáveis (e, então, o pensamento "lateral, ao ignorar nossos "marcadores somáticos, seria capaz de explorar uma gama maior de soluções?).
Processos inconscientes e invisíveis seriam normalmente responsáveis pela censura das soluções que chegam ao exame do cérebro racional.
Assim, muito embora não trate da consciência ou das partes do cérebro envolvidas em nossas experiências conscientes, o livro oferece, a partir dos casos de pessoas com danos cerebrais que se distanciam de suas próprias emoções, uma visão instigante do papel das emoções no processo de tomada de decisões racionais em cérebros normais.
O erro de tentar separar "mente e "cérebro pode ser menos corrente hoje em dia, quando mais e mais filósofos e fisiólogos dão as costas a um dualismo gasto, mas o que mais ocupa Damasio é o erro ainda prevalecente de separar razão e emoção. A seu ver, ter sentimentos é uma das tarefas principais do cérebro.
Damasio dá uma contribuição importante ao propor que abandonemos uma visão das emoções como complicações inúteis para um cérebro puramente intelectual e que, em vez disso, tentemos encará-las como parte integral do processo de decisão racional.
Talvez não tenhamos avançado na compreensão da consciência, mas já temos idéias mais precisas sobre a conexão entre razão e emoção.

"Descartes' Error: Emotion, Reason and the Human Brain, de Antonio R. Damasio, Grosset/Putnam, 312 páginas, US$ 24,95.
Tradução: SAMUEL TITAN JR.

Texto Anterior: Pesquisador diz que o cérebro é sede da alma
Próximo Texto: Pesquisador revela como o cérebro vê o mundo ao seu redor
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.