São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As agruras de Voltaire

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Essas memórias, como bem explica Marcelo Coelho em seu posfácio, devem entender-se no sentido que tinham no século 18. "Memórias, hoje, almejam a uma totalidade, geralmente narrando uma vida inteira; mas, no tempo das Luzes, elas ainda significam um depoimento, um relato. E estas se referem ao convívio de Voltaire com Frederico, o Grande, rei da Prússia.
O que assim se encena são as relações da filosofia com o poder. No século 18, elas tiveram destaque. Os três maiores filósofos franceses da época frequentaram os poderes. Diderot foi à corte da Rússia, convidado pela tzarina Catarina 2ª; Voltaire esteve em Berlim, com Frederico, de 1750 a 1753; e até Rousseau, tão avesso aos poderes, aceitou escrever projetos de constituição para a Polônia e a Córsega.
O notável nesses três namoros de pensadores com o poder é o fracasso. Diderot e Voltaire tiveram que fugir de seus respectivos déspotas esclarecidos, ao verem que eram mais despóticos do que ilustrados. As propostas de Rousseau também deram em nada: Polônia e Córsega perderam a liberdade, tragadas por vizinhos mais poderosos.
Foram estas as últimas tentativas relevantes de acesso do filósofo ao poder pela via tradicional que vinha desde Platão, a do conselheiro do príncipe. No século 19 Marx ensaiara um novo modelo, parece que também baldado, o de conselheiro das classes populares.
As "Memórias de Voltaire são, por isso, a crônica de um fracasso. O filósofo embeleza sua parte, e Marcelo Coelho -embora só possa simpatizar com seu racionalismo- aponta, implacável, todos os casos em que ele falta com a verdade, ou por amar muito o dinheiro, ou por tolerar, como era praxe, as infidelidades de sua amante.
Mas talvez o que valha a pena ressaltar, nesses desencontros com o poder, são duas coisas: o papel que estas "Memórias têm no "Cândido, que, pela mesma época, nosso autor escreve; e a curiosa forma como Voltaire concebe as relações de poder, isto é, a política.
Vários episódios ou expressões serão retomados no "Cândido. O jovem alemão ingênuo, que acredita em tudo o que prega o otimista dr. Pangloss, será recrutado à força no exército do rei dos "avaros (leia-se: prussianos). Ao desertar, será castigado severamente, com o regimento inteiro surrando-o "36 vezes com suas varas (exatamente o que narram, em duas ocasiões, essas "Memórias).
Além disso, como nas "Memórias Voltaire simpatiza com a Áustria, em guerra com a Prússia, aquele país é poupado de qualquer ataque no "Cândido. Os jesuítas e seu Paraguai aparecem nas duas obras. E uma expressão que ficou célebre também é recorrente: o comentário de que a França e a Inglaterra fizeram uma guerra por "alguns alqueires de neve, referência ao Canadá.
Em suma: se o "Cândido é a viagem iniciática pela qual o personagem-título se desengana do "otimismo (que é o outro título do livro) e aprende a importância do trabalho não-ambicioso ("cultivar nosso jardim ou nossa horta), as "Memórias relatam uma outra viagem de decepção: a de perda de ilusões com o poder. É depois disso que Voltaire passará a viver numa casa realmente sua, nas fronteiras franco-suíças, e a prezar a liberdade mais do que nunca, enfim, a ser o Voltaire cujas obras -essencialmente os "Contos- hoje lemos.
Mas pode haver também uma relativa decepção nossa nesse livro, e será vendo como Voltaire concebe as relações de poder. Sua leitura da política se mostra bastante tradicional. Toda ela está montada sobre alguns princípios típicos do Antigo Regime: o acaso, a intriga.
A história por ele relatada é basicamente pontuada por guerras, nas quais a diplomacia desempenha papel relevante. Ao tempo em que Rousseau publica seu "Discurso sobre a Desigualdade (1755), obra que dá sólida base a uma leitura social e mesmo econômica da história humana, Voltaire se contenta com a petite histoire, a dos encontros e desencontros dos grandes. Isso, na verdade, porque ele nunca teve uma teoria política, ao contrário de Rousseau e mesmo de Diderot.
Se nas relações externas tudo alterna entre a astúcia e a força, entre as negociações diplomáticas e as manobras militares, o modo como cada potência se engata nesse jogo depende, por sua vez, de intrigas de corte. Voltaire era ligado a Mme. de Pompadour, amante de Luís 15, que o aproximou do partido austríaco, revertendo assim a velha política francesa de oposição aos Estados da família Habsburgo.
Ora, o que temos aqui são constantes intrigas, em que a sedução sexual, o agrado aos poderosos, a ambição e mesmo o acaso ganham destaque. Não é por acaso que, para denegrir Frederico, Voltaire o acusa de ateu e homossexual. Conta, aliás, que o rei, depois do café matutino que tomava com alguns belos pajens, "deixa cair o lenço diante de um e fica 15 minutos sozinho com ele: esse era um hábito atribuído ao sultão otomano, que assim escolhia a favorita da noite. Dizendo que o rei da Prússia seleciona seu companheiro de cama sem lhe dizer palavra, Voltaire insinua que o desafeto não é um déspota esclarecido, mas oriental, que, em vez de educar, abusa.
Mas, da ênfase dada às intrigas, não vamos concluir que Voltaire esteja errado ou capte só a superfície, perdendo a profundidade. Com certeza, ele não deu à política um tratamento como o de seu oponente Rousseau, que bem merece o título, conferido por Durkheim, de precursor ou mesmo fundador das ciências sociais.
Para nós, o texto de Voltaire soa distante -mas, por isso mesmo, serve de excelente depoimento (de "memórias) para mostrar como a "boa sociedade do século 18, mesmo a mais intelectualizada, se concebia. A leitura que Voltaire faz da política é, ainda, a da sociedade de corte.
Nunca é demais insistir na falta que nos faz uma história dos fracassos. O Voltaire que lemos, hoje, é o sexagenário que escreveu os "Contos, não o autor de dezenas de peças de teatro e historiador oficial do reino de França. Mas isso mesmo significa. Suas obras menores ou esquecidas ainda têm algo a nos dizer. Nessas "Memórias, conta-se a decepção com o déspota esclarecido.
Afinal, no século 18 a filosofia se entendeu como luzes; seu papel social nunca foi tão nítido; pretendeu colocar ao alcance de todos o conhecimento, a fim de banir a superstição. Voltaire, a quem podia faltar um sistema de idéias ou uma doutrina política, mas não faltava o senso de justiça, bateu-se contra vários abusos judiciais que ficaram famosos. Mas ele, como alguns de seus amigos enciclopedistas, de tanto acreditarem no conhecimento, de pensarem que travavam o "bom combate da verdade contra o erro, entenderam que os meios para chegar a esse fim luminoso podiam ser variados, e mesmo neutros. Daí que os convites da realeza fossem, a seus olhos, bem-vindos.
E daí, finalmente, que a decepção viesse tão forte. Nada mais afastado dos "Philosophes do século 18 do que a proposta revolucionária. As idéias deles podem até soar radicais (o que é raro em Voltaire, mas não em Diderot, Rousseau ou na erótica do tempo, como em "Teresa Filósofa), mas sua política costuma passar pelos poderes que existem, para citarmos o apóstolo Paulo. Puderam acreditar que das recepções em palácios, do convívio com a velha nobreza, adornada pela filosofia (de que é bom exemplo o "Newtonianismo para Mulheres, que um conhecido de Voltaire escreve), algo sairia que melhorasse o mundo.
Não foi o caso. As mudanças vieram pela via imprevista, a Revolução, que, por sinal, ao radicalizar-se, afastou-se da moderação voltairiana. Mas nada disso impede que ler Voltaire seja sempre um convite, senão à inteligência, pelo menos à finura e ao espirituoso.

Texto Anterior: CRÍTICA; ECONOMIA; FERENCZI; PSICANÁLISE
Próximo Texto: A OBRA; O AUTOR
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.