São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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As vidas brutais de Voltaire de Souza

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Está na cara? Está na capa: ali estão desenhos de George Grosz, o implacável satirista da burguesia alemã (e rotulado, pelo nazismo, como "artista decadente); ali está o título, ``Vida Bandida", a anunciar que o livro não falará de amenidades; ali está o nome do autor, Voltaire de Souza, que alude ao filósofo francês conhecido pela feroz ironia, neutralizando-o (e nacionalizando-o) com um mais corriqueiro Souza; ali está, finalmente, uma história chamada ``Amor e Grana"; o sublime amor e a vulgar grana. Evanda, rica, casa-se com Irineu, pobre. Humilha-o. Ele se vinga, prostituindo-se e ganhando a maior grana. Evanda volta a amá-lo. "É difícil entender o coração de uma mulher, conclui a história.
Resumida, aqui? Não mais que no original; nenhum dos contos de ``Vida Bandida" passa de uma página. Todos têm uma estrutura extremamente simples: os personagens não são descritos, nem os cenários; as sentenças são curtas, os diálogos secos, às vezes brutais. As situações são quase sempre sombrias, cruamente realistas; deixai todo o lirismo na porta (da livraria), ó vos que entrais, e preparai-vos para encontrar a Dona Eleutéria, o Osvaldo, o sr. Saraiva, o Ênio (bem tarado), o Almádio, a Patrícia, personagens -cômicos, patéticos, sórdidos- que povoam o cotidiano brasileiro e aparecem nas notícias policiais, nos programas sensacionalistas de rádio e de TV.
As histórias que contam têm a mesma urgência dos minicontos de Voltaire de Souza; buscam, no espesso e nauseabundo nevoeiro do irracional, alguma tênue evidência da racionalidade.
Atendendo a este desejo, as histórias imorais de ``Vida Bandida" têm, na última linha, algo que funciona como a moral das fábulas (uma moral que faria La Fontaine tremer). Dona Jacira, viúva rica, tem sua casa assaltada por um ladrão chamado Bombinha. Trata-o bem, ele se apaixona, casam-se, ela o acompanha nos assaltos: "Fico no carro enquanto ele rouba. Na campanha. É bom participar da vida do meu maridinho.
Examinando a conta telefônica do escritório, o dr. Saavedra constata que alguém está ligando para o Disk-sexo. Encarrega Josias, boy de confiança, adventista, de descobrir quem está fazendo as ligações imorais (e caras). Para surpresa do chefe, trata-se da virtuosa Dona Mercedes. Que, em desespero de causa, e apesar de 65 anos, consegue seduzir o dr. Saavedra. É promovida. "Josias é que foi para o olho da rua.
Não é difícil identificar a vertente literária a que Voltaire de Souza pertence: Dalton Trevisan vem de imediato à lembrança. Nelson Rodrigues também. São os escritores da vida escrachada, aqueles que convocam espectros e escancaram portas de armários para mostrar os esqueletos já escondidos. Aliás, como Nelson, Voltaire fez estas histórias originalmente para jornal, e para um jornal que está longe de ser "highbrow: o "Notícias Populares. Daí o tom anedótico; o leitor imediatamente imagina uma mesa de bar e alguém ("babando na gravata, para usar a expressão rodrigueana) a dizer, em tom cúmplice: "Sabem da última do Almádio?
A última do Almádio é notícia, e é notícia eminentemente popular, sem grandes vôos literários. Não deve se esperar grandes elaborações filosóficas de ``Vida Bandida". Não é esse o seu objetivo. Seu objetivo, plenamente alcançado, é fazer uma colagem (como a da capa) que retrate o Brasil dos anos 90. Um Brasil que busca uma poção mágica, como a personagem de Voltaire de Souza: "Até que a Verônica não era feia. Mas ela tinha um problema. Espinhas. Muitas. As muitas espinhas do país estão aqui. Sem nenhum disfarce cosmético. E sem perspectiva de cura pela poção mágica.

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