São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Um pensamento sem amarras

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Poeta, dramaturgo, ensaísta, epistológrafo, contista, dicionarista, historiador, satirista, polemista. "É o maior homem em literatura de todos os tempos, escreveu outro polímata, Goethe, sobre Voltaire. Em "Voltaire - O Nascimento dos Intelectuais no Século das Luzes, lançado pela Jorge Zahar, o crítico francês Pierre Lepape analisa esse homem de letras como um fenômeno novo na sua época.
O livro saiu na França no ano passado, no tricentenário de Voltaire, e foi considerado o melhor produto da efeméride. É fácil entender por quê. O que predominou nos textos da imprensa mundial foi um tom apático decorrente da idéia de que Voltaire, "no sentido técnico, não era um filósofo.
Como assim? Voltaire jamais criou um sistema de pensamento, jamais erigiu uma teoria globalista. Logo, segundo esses pobres de espírito, não pode ser considerado um "philosophe. Ora, bolas. O que Lepape demonstra é justamente que ninguém foi mais "philosophe do que ele. O Voltaire que Lepape biografa é um homem que lida com as idéias acima de tudo, fazendo "intervenções literárias em todos os assuntos, sem a menor sombra de solenidade ou obscuridade. Ele acreditava no debate que resultasse numa ação e que qualquer idéia pudesse ser expressa em linguagem simples e clara.
O mais espantoso é que ele não ficava reduzindo o mundo a esquemas classificatórios, não ensacava a variedade do mundo com idéias prontas. (Nesse sentido, é nosso contemporâneo). Como mostrou o ensaísta Isaiah Berlin, Voltaire foi o primeiro perspectivista, e não relativista, pois havia nele um modo livre de ver as coisas. Voltaire só sustentava dois valores imutáveis, um coletivo e outro individual: a justiça e a curiosidade. Com isso se constrói o mundo, dizia ele.
Balançar a ideologia cristã -um serviço que só Nietzsche concluiria, um século e meio depois- foi sua maior briga. Não era pouco; todas as armas verbais eram necessárias. Basta ver "Deus e os Homens, que a Martins Fontes também acaba de lançar.
O livro foi escrito sob dois pseudônimos, Doutor Obern e Jacques Aimon, e é um tratado sobre os cultos à divindade nas mais diversas sociedades. Na verdade, é uma defesa da necessidade de um culto à divindade, ao mesmo tempo que uma ácida crítica dos dogmas religiosos. Não é nada original, mas é importante no contexto histórico. E tão bem escrito que não há como não se interessar.
Escrevendo na língua culta daquele mundo, com uma prosa que dava ao francês uma agilidade que nem mesmo Montaigne dera, Voltaire pode não ter sido tão bom filósofo quanto Rousseau, Montaigne ou Pascal. Mas, como Lepape mostra, ele era mais que um filósofo, não menos, e encarnou uma era. Não é um epitáfio qualquer.

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