São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Quatro

GIORGIO MANGANELLI

Por volta das dez horas da manhã, um cavalheiro de boa formação e humores moderadamente melancólicos havia descoberto a prova irrefutável da existência de Deus. Era uma prova complexa, mas não a ponto de não poder ser captada por uma mente mediamente filosófica. O cavalheiro de bons estudos permaneceu calmo, reexaminou a prova da existência de Deus do fim ao princípio, de través, do princípio ao fim, e concluiu que fizera um bom trabalho. Fechou o caderno de anotações pertinentes à definitiva prova da existência de Deus e saiu para tratar de coisa alguma -em suma, para viver. Por volta das quatro horas da tarde, voltando para casa, percebeu que havia esquecido a exata formulação de algumas passagens da demonstração; e todas as passagens, naturalmente, eram essenciais.
Tal feito deixou-o nervoso. Entrou num local para tomar uma cerveja e pareceu-lhe, por um instante, estar mais calmo. Reencontrou uma passagem, mas logo depois deu-se conta de ter perdido outras duas. Confiava em suas anotações, mas sabia que as anotações eram parciais, e assim as tinha deixado, já que não queria que ninguém, nem mesmo a empregada, tivesse a certeza da existência de Deus antes de ele ter desenvolvido diligentemente toda a argumentação. Dois terços do caminho de casa percorridos, deu-se conta de que enquanto a prova da existência de Deus estava perdendo suas firmes, admiráveis características, topava com argumentações que ele já não sabia ao certo pertencerem à sua argumentação originária. Havia uma passagem que concernia ao Limbo? Não, não havia, e não havia as Almas Dormentes, mas talvez houvesse o Juízo Final. Não tinha certeza. O Inferno? Não lhe parecia provável, contudo parecia-lhe ter debatido demoradamente sobre o Inferno, e ter colocado a existência do Inferno no ápice de sua investigação. Chegado diante da porta, foi tomado por um suor frio. Do que, realmente, havia demonstrado a existência? Já que algo resultava indiscutivelmente verdadeiro, inatacável, e ainda assim impossível de se fixar numa fórmula inesquecível. Só naquele instante percebeu que estava apertando na mão a chave de casa e, com um gesto de tardio desespero, arremessou-a ao meio da rua deserta.

Capítulo extraído de ``Centúrias". Tradução de ROBERTA BARNI

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