São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

``Causos" bem contados

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Após décadas de predomínio do romance de traços psicológicos ou experimentais, parece haver, internacionalmente, uma tendência à retomada da narrativa pura e simples. "Caso Contado à Sombra do Mercado, de Mario Ribeiro da Cruz, surge aí como obra exemplar. Mostra as delícias que tal resgate proporciona, mas, também, os riscos que ele implica.
Vencedor do Prêmio Nestlé de Literatura, o livro reúne uma vintena de "causos que se "passaram na pequena cidade mineira de Salinas. Após uma introdução descrevendo rapidamente a cidade e o mercado junto ao qual costumava se reunir uma roda de contadores, o autor passa de imediato às suas histórias, rigidamente divididas capítulo a capítulo.
Bastam os títulos dos capítulos para entender do que se trata. Eis alguns: "Como Meu Tio Bertoldo Entrou num Tiroteio de Jagunços, "Como Orozimbo Caçava, Matava e Comia Cobras, "Como Meu Pai e Umbelino Astuciaram um Jeito Para Arranjar um Quarto Para Dormir numa Festa de Casamento -assim por diante.
O elo entre esses capítulos é dado pelo narrador principal, filho de um dos contadores de caso, que testemunha as conversas escondido e faz as vezes, aqui, já adulto, de compilador. Dessa maneira, embora catalogado como romance, o livro não articula um enredo próprio, antes registra elaborações alheias.
São relatos de curas e estripulias da "gente do interior, lendas cheias de crenças esdrúxulas, grandes trapaças e vícios pequenos. Tudo isso exposto numa linguagem coloquial, contendo cantigas típicas, expressões singulares, gírias. Como se Ribeiro da Cruz tivesse registrado tudo inicialmente num gravador, para depois ir ao papel -não sem ajustar, porém, pronúncias e preposições, o que dá ao conjunto certa hibridez.
"Ouve-se o livro, de toda forma. Tal como nos primórdios da literatura se ouviam narrativas em torno de alguma fogueira ou numa mesa de almoço.
Nesse sentido, é preciso constatar que o escritor, enquanto criador, enquanto artista da linguagem escrita, praticamente desaparece. O que se destaca, é muito mais um trabalho de folclorista, de registro cultural, executado por alguém visivelmente apaixonado por seu objeto.
O fato de Salinas ser uma cidade real, existente nos mapas, acentua esse caráter. Da mesma forma que o apêndice ao final do livro, com as partituras de cantigas mencionadas pelos contadores de caso.
O único momento em que a voz do autor aparece de modo claro é na introdução (primeiro capítulo), em que ele afirma sua também típica nostalgia: "O lugar onde eu nasci não existe mais. Ou pensando bem, existe sim. Mas não como o lugar onde eu nasci. Isto é, existir, existe, fisicamente. Mas o que existe no meu pensar não existe fisicamente, como lugar.
Para quem carece de algum velho parente ou amigo que divirta a todos contando façanhas numa mesa de domingo, para quem pesquisa ou gosta de histórias tipicamente brasileiras -e não tem paciência para enfrentar a complexidade, a profundidade, a radicalidade de um Guimarães Rosa-, eis um compêndio recomendável.
Para quem teme a petrificação artística e, além disso, busca inventividade autoral, estilo singular, escrita, densidade literária e/ou, junto a isso, uma trama romanesca, já não é o "causo.

Texto Anterior: Quatro
Próximo Texto: O olhar atento do cartum
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.