São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Modus in rebus

JOSÉ ARTHUR GIANOTTI

O que confere esse caráter oscilante ao governo é a própria conjuntura internacional
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Não me parece que um bom governo seja aquele que acerta em todas as suas jogadas mas, antes de tudo, aquele que, tendo uma direção a seguir, logra corrigir sua rota quando os ventos o desviam de seu caminho. Uma das fragilidades do atual governo é não ter logrado escolher um coordenador político que proteja o presidente dos atritos inerentes a qualquer negociação. Creio que isso pesou no episódio que levou à intervenção no Banco Econômico.
Cabe reconstruir os fatos com os dados de que dispomos até agora. Diante do descalabro da situação financeira do Econômico, o Banco Central propõe a intervenção. As consequências sociais e políticas desse ato somente se configuraram depois do prato feito.
Diante das pressões de Antônio Carlos Magalhães e de José Sarney, o presidente hesita e procura contornar os obstáculos. ACM, que sempre joga com a mídia, prepara seu show: atravessa a praça dos Três Poderes como se fosse um campo de batalha sem atritos. Exagerou na dose. Acrescentando as reações de seus adversários e a indignação da sociedade civil, criou-se a impressão de que o governo tinha se suicidado.
Havia, porém, terreno para o contra-ataque. A equipe econômica foi firme, o presidente realimentou suas baterias e voltou à luta. Como em toda negociação política, a decisão se delineia nos pormenores, dentro do acordo geral foi ainda possível estabelecer condições para que o Econômico voltasse a operar sem minar a linha de contenção imposta pelo Plano Real, e ACM foi obrigado a dispensar o trio elétrico que o receberia triunfalmente em Salvador.
Que lições é possível tirar de tudo isso? Creio que se confirma a tese de que este governo é estruturalmente pendular. Mais do que o caráter do presidente, creio que importam sobretudo o tipo de alianças que o levou ao poder e a degeneração do próprio aparelho do Estado.
O primeiro fator obriga o governo a lidar com forças políticas antagônicas, cuja convergência depende de projetos diferentes de poder. O segundo torna difícil uma ação coordenada, posto que cada ponto do aparelho possui sua própria visão do processo sem que haja dados suficientes e máquina azeitada para que as ações se articulem em um único nível.
O governo navega entre Silas e Caríbides no meio de um nevoeiro. Mas o que mais lhe confere esse caráter oscilante é a própria conjuntura internacional, que requer uma rápida abertura de nossa economia, em confronto imediato com a necessidade interna e premente de diminuir a injustiça social.
Daí a importância de uma melhor configuração dos interesses partidários e, de meu ponto de vista, do realinhamento das esquerdas para empurrar o governo para o lado de uma política capaz de fomentar o desenvolvimento e a igualdade social.
Estamos longe, porém, dessa consciência; ao contrário, nós, intelectuais, é bem provável que estejamos deixando de cumprir nossas funções. Não nos cabe, nesse momento, soçobrar no jogo dos políticos, que legitimamente procuram fazer valer seus interesses partidários. É outro nosso papel.
Em particular, há de se pedir à mídia que exerça sua inteligência, que não caia no jogo fácil de assustar o público apontando a presença do perigo enquanto o seu lobo não vem, que evite o latinório para encobrir a ausência de pensamento, que recuse o chavão a respeito da incompatibilidade entre a reflexão teórica e a atividade política quando o momento exige o esforço cuidadoso no sentido de compreender as vicissitudes do ato e as dificuldades de uma política desprovida de toda e qualquer escatologia.
Não é chegada a hora de pedir aos ``formadores de opinião" que ao menos tenham opinião, vale dizer, desenhem ao menos uma imagem daquilo que possa vir a ser um modelo da realidade? Nunca me parece tão urgente recordar a velha máxima espinosista: no que respeita aos negócios humanos, não cabe rir nem escarnecer, mas, antes de tudo, entender.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, 65, filósofo, é professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo) e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

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