São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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o Forrest Gump baiano

COSETTE ALVES

"Fui criado vendo meus avós paternos chamando minha mãe de "nega". Diziam que ela havia "sujado" a família"
"Tudo me incomoda. Mas o que me incomoda é, ao mesmo tempo, o que me inspira"
Capoeirista, bailarino e coreógrafo, Jelon Vieira Filho, 42, é sucesso nos EUA. Baiano de Santo Amaro da Purificação, fundou e dirige a Dance Brazil e a Capoeira Foundation. A pobreza, o preconceito e a ditadura poderiam ter transformado sua vida numa série de infortúnios. Mas ele correu e escapou. Aos 9 meses, fraturou as pernas. Diagnóstico: não andaria mais. A mãe não se conformou e, toda manhã, fazia-o enterrar as pernas na areia. Dois anos depois, foi acordada por Jelon andando, cambaleante. Hoje, ele tem passos leves e firmes, movimentos harmônicos de mãos e cabeça. Começou na capoeira aos 7. Aos 19, deixou o país, após prisão, tortura e desaparecimento de amigos seus. Estudou dança na Europa. Convidado a se apresentar em Nova York, apaixonou-se pela América e ficou. Lá, ensina capoeira em presídios e tem uma escola de dança no Texas, que distribui bolsas a crianças carentes. Seu trabalho é todo inspirado no passado, no desamparo dos meninos de rua. A última coreografia, “Pivete”, é uma alusão ao massacre da Candelária. A próxima,
“Quilombos”, estréia em 1996, no Jhoyce Theater (NY). O menino das pernas quebradas virou Forrest Gump. Pés na América, coração na Bahia, corre atrás de seus sonhos.

Dê uma definição de movimento.
É uma maneira de você se comunicar melhor com as pessoas.
Como você se vê?
Sou mais um pensador.
Um pensamento fixo.
O que é o meu trabalho e qual o objetivo do meu trabalho.
E qual é o objetivo do seu trabalho?
Conscientizar. O trabalho mais recente, “Pivete”, foi inspirado no choque que tive com o massacre da Candelária (em julho de 1993, quando oito meninos foram mortos no centro do Rio).
Como vai o seu trabalho aqui fora?
Sei que é bem aceito em todos os Estados Unidos. Estamos sempre de casa cheia. As críticas têm sido maravilhosas, tenho tido uma boa mídia.
Como estão os subsídios do governo americano para as artes?
Nas décadas de 70 e 80 era muito bom, mas do governo Reagan para cá começaram os cortes; minha fundação perdeu quase 50% das verbas.
Qual era seu orçamento?
Mais ou menos de US$ 500 mil. Caiu para US$ 150 mil por ano.
Como vocês têm sobrevivido?
Fazendo cortes, diminuindo staff no escritório. Temos que nos adaptar aos tempos, fazer projetos realistas. A companhia está sobrevivendo com seu trabalho multicultural.
Como a capoeira pode ajudar a um menino de rua?
Estimulando o auto-respeito. A capoeira ensina ele a se respeitar e a respeitar os outros. Dá a ele uma base de guerreiro. Fortalece o espírito de crianças que, como eu, foram criadas sem pai e que se sentem fracas. Eu me identifico com a criança desprotegida, sem pai, de rua, pois as lembranças de meu desamparo na infância nunca me abandonaram.
Fale de sua mãe.
Minha mãe é enfermeira. Tentou trabalhar em hospital, em farmácia, vendia para confecção, fazia de tudo para dar à gente uma base de educação. Era difícil para uma mulher.
Você trabalha também no Brasil?
Toda vez que vou ao Brasil dou aula a um grupo de crianças pobres em Salvador. Três ou quatro vezes ao ano trabalho com eles. Capoeira é uma chance de trazer de volta, ensinar a recomeçar. É a chave.
Como funciona esse seu trabalho com jovens nos presídios americanos?
Em Olímpia (próxima a Seattle, Estado de Washington), eu fui três dias à detenção. Conversava sobre o Brasil, explicava sobre a cultura, a situação das crianças de rua no Brasil e aqui, as vantagens que eles têm aqui... Terminava com uma aula de capoeira. Fiz isso em Stamford e em Nova York City, onde há outra detenção para jovens entre 11 e 18.
E o trabalho no Texas?
Lá fiz uma residência de duas semanas, em San Antonio. A prefeitura gostou e me convidou para abrir uma escola. Eu abri e botei o nome de “Ilê Bahia” (“Casa da Bahia”, em dialeto africano). Trouxe de Salvador um percussionista, uma dançarina e um capoeirista, meu sobrinho. O objetivo é atender às pessoas carentes e também à comunidade. Eu sou diretor artístico da escola. Meu sobrinho e a mulher dele a dirigem para mim.
Quais as diferenças entre a discriminação no Brasil e nos EUA?
O nosso país é tão racista quanto os EUA. A comunidade negra aqui é muito mais sofisticada. Há uma resistência aqui do lado negro; no Brasil não temos nenhuma resistência. Acho o negro no Brasil muito acomodado. Ele precisa ter mais orgulho, autoconfiança, consciência. O Brasil é um país negro. A Bahia é um Estado africano, para mim. Mas que se torna mais racista porque não tem negro no poder.
Você se sente discriminado?
Posso falar, porque sou vítima. Minha mãe é negra, meu pai era branco. Fui criado vendo meus avós paternos chamando minha mãe de “nega”. Diziam que a minha mãe havia “sujado” a família.
À distância, o que acha do Brasil?
Ponho fé no presidente e estou com esperança de que melhore a educação. Para mim é a prioridade.
Qual seu próximo projeto?
Estou preparando a pesquisa de “Quilombos”. Pretendo começar a ensaiar em setembro.
O que deveria ser feito para melhorar o acesso dos negros às oportunidades?
Educação. É preciso ensinar à juventude: conhecimento é poder.
E sua história aqui, como começou?
Primeiro estudei balé clássico na França. Depois fui para Londres. Recebi um convite para dançar aqui em NY. Eu ia voltar, mas me identifiquei com a cidade. Era abril de 75. Achei que eu ia me educar só andando na rua. Foi o que aconteceu. Percebi, também, que não tinha nada da cultura brasileira. Tinha Astrid Gilberto, Sergio Mendes, mas da cultura baiana nada. Em 77, formei um grupo chamado “Dance Brazil”. Comecei a ensinar capoeira em 75, abri uma academia. Formei o grupo com o Loremil Machado, que morreu de Aids no ano passado. Em 1980, criei a “Capoeira Foundation”.
Você ainda dança?
Não. Hoje só faço capoeira quando tenho tempo. Coreografo e dirijo o grupo. Eu me sinto mais um coreógrafo do que qualquer coisa, mas espiritualmente sempre serei um capoeirista. A capoeira me ensinou o respeito à vida. Gosto de ensinar capoeira para crianças e adolescentes porque ajuda a recuperar os focos de concentração -uma coisa que as crianças de rua não têm.
Quais os melhores do Brasil?
São Paulo tem o Suassuna, Rio tem o Mestre Boneco, o Mestre Camisa, o Mestre Sabiá; Bahia tem o Mestre João Pequeno e há outros ótimos.
Você já se exibiu no Brasil?
Eu montei “Pivete” na Bahia, uma só vez. Foi o maior sucesso. Busquei apoio para voltar, mas não consegui, acho que as pessoas no Brasil pensam que sou só capoeirista, não sabem que dirijo uma companhia, que sou coreógrafo. Engraçado, sou mais conhecido aqui e na Europa.
Como você vive nos EUA?
Eu não vim com o sonho de certos brasileiros, de ganhar muito, consumir, ter carro bonito, impressionar meus amigos. Vivo de forma simples. A minha casa é modesta.
Como você lida com frustrações?
Me isolando. Não escuto, não atendo telefone, fico anti-social. É uma maneira de me reciclar.
Você é hetero ou bissexual?
Eu me sinto humano. Eu nunca tive relação com homens, mas somos vulneráveis a tudo. Fui casado por quatro anos com uma mulher. Tenho muitos amigos homossexuais, tenho meus dançarinos, sou uma pessoa livre. Aceito tudo. Mas, devido à forma como fui criado, não consigo participar fisicamente de certas coisas.
Você acredita em vida após a morte?
Acredito.
E em vida extra-planetária?
Acredito. Uma vez, minha mãe esteve aqui nos EUA e eu fazia um curso de capoeira num lugar chamado Omega, um instituto no meio do mato. Um objeto desceu: redondo, com uma luz em volta. À meia-noite, despertou todo mundo: minha mãe, minha sobrinha, dois amigos. Fomos para o campo olhar. Ele se movimentava de uma maneira estranha. Ligamos para o aeroporto, disseram que não registraram nada. Ligamos para a polícia, mas Omega é conhecido como um lugar de pessoas excêntricas. Não levaram a sério. Ainda bem que minha mãe estava lá e viu.
Algo no Brasil que o impressiona.
Os meninos de rua. Foi terrível pesquisar para fazer “Pivete”. Levei os dançarinos também, para que vissem certas situações. Fui a um lugar chamado Cana Brava, um bairro de Salvador que é um terror. Há um depósito de lixo e uma invasão de mais de mil pessoas, casinhas pequenininhas, de papelão, de compensado... Eles sobrevivem daquele lixo. Todo dia, quando o caminhão do lixo chega, sai todo mundo e é a maior briga. As crianças moram em volta, mais de 300. Muitas morrem antes dos 12.
O que você mudaria no mundo?
Acabaria com a fome, a Aids, o ódio e educaria todos aqueles que têm direiro de receber educação.
O que você critica nos EUA?
O governador atual, a pena de morte que ele trouxe. Quem vai morrer na pena de morte, quem? Os latinos e os negros; 95% das pessoas que morrem condenadas aqui são latinas e negras. Jamais uma pessoa que tem dinheiro vai morrer na pena de morte. Também critico os cortes das verbas para serviços sociais, para a Aids e para a educação.
Em quem votaria nos Estados Unidos e no Brasil?
Aqui, em Clinton; no Brasil, tenho dado meu voto nulo. Mas votaria em Antonio Carlos Magalhães, se ele se candidatasse a presidente.
Por quê?
Admiro a força e energia que ele tem. Eu fui apresentado uma vez a ele, numa recepção. Senti nele uma energia muito boa, acho que ele me disse que fez capoeira. O fato é que tem uma energia de capoeirista. É um guerreiro, um dos políticos mais fortes que temos no Brasil, de garra. Acho que ele não foi presidente por preconceito do Sul. É uma pena. Seria um grande presidente.
Fale de seu relacionamento com Sonia Braga e Caetano Veloso.
São meus conselheiros. O Caetano me dá idéias, conversa muito comigo. Quando eu tenho um evento, a Sonia dá a maior força também, ela sempre é a hostess.
Qual o novo projeto, fora “Quilombos”?
Em setembro, juntamente com a Fundação Cultural da Bahia, estou fazendo um festival chamado “Men in Dance”. Somente homens dançarinos, e um dançarino principal de uma grande companhia lá do Rio e de São Paulo, outro da Bahia, e um da Martha Graham, e o Alvanelli, do American Ballet Theater.
Vai ter a mídia americana lá?
Sim, Jennifer Dunning (“The New York Times”) mostrou bastante interesse em ir ao festival, agora na primeira semana de setembro. Gostaria que você estivesse lá também...

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