São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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São Paulo toda purinha

MARILENE FELINTO

Poder de cobertura é o nome que se dá à capacidade de uma tinta de recobrir uma superfície mascarando-a completamente. É também como se pode chamar a política adotada pelos poderes paulistas (o municipal e o estadual) para administrar a megalópole sem controle.
Sobre segurança já nem se fala. A coisa está às moscas. Não é preciso ir à periferia para levar um tiro à queima-roupa. Basta entrar num shopping center, num supermercado.
Falo de São Paulo com filtro. Da maquiagem que vão aplicando pouco a pouco no castigado rosto da cidade. De um lado o Estado, demagogo, imita a cidade do México (não haveria exemplo melhor?) no combate à poluição do ar.
Estipulou o rodízio de automóveis em certa área da cidade. Mas esqueceu-se de combater o mal pela raiz, na fábrica onde são construídos os carros poluentes, no controle periódico dos veículos pelos departamentos de trânsito responsáveis.
Tiraremos nosso carro da rua uma vez por semana, mas continuaremos a receber na cara a baforada, a descarga tóxica de milhares de caminhões, ônibus e carros velhos desregulados. A fuligem negra sobe em espirais, entope nossos olhos, poros, gargantas e pulmões.
É São Paulo "trabalhando", como diz o slogan da prefeitura, ela que, mais original, oscila entre imitar a França e Cingapura. Na França, baixaram uma lei proibindo o trânsito de mendigos pelas ruas. Incapaz de fazer a coisa funcionar pela força de lei (no Brasil lei não tem força mesmo), a prefeitura age na marra, na base do ferro e da britadeira.
Tem mandado cercar com grade todo e qualquer recanto que possa servir de abrigo à mendicância debaixo dos viadutos. Mas a miséria é tamanha, é tamanho o desabrigo que o mendigo vence a britadeira, entorta as hastes das grades, volta a instalar-se sob o viaduto de onde quiseram expulsá-lo. Restabelece seu lar, agora enjaulado, deixando bem clara a desigualdade da luta entre Davi e o gigante Golias.
Cingapura é o nome dado pela prefeitura à verticalização (construções em alvenaria) das favelas. Ora, Cingapura é uma das maiores ditaduras da Ásia. A multa por se jogar um chiclete no chão em Cingapura é algo em torno de US$ 300. Está no nome o projeto de ``purificação" da cidade.
``Cleanness", limpeza (étnica, da água, do ar) são palavras em voga. Primeiro a prefeitura inventou um disque-buraco (de vida curta). Depois, quis demagoga proibir o fumo em locais públicos. Agora, caça baratas em restaurantes, em farsas montadas para promover a figura do prefeito. Ele avisa com antecedência o dia da blitz, para que a imprensa compareça e fotografe.
É também notório que município e Estado não se entendem. Enquanto um quer tirar os carros das ruas, o outro rasga avenidas, alarga, escava túneis que batiza com o nome de "complexo viário" (para dar a idéia de desenvolvimento) e "Ayrton Senna" (para apelo público). Ou simplesmente bota o nome da mãe do prefeito, do pai, da avó.
Entre os dois poderes aparece você esmagado, a sua consciência gritando que a tinta estufou, rachou, revelando a camada velha, o seu voto mais uma vez errado -revelando que ou você é tapado mesmo, ou no poder público sucedem-se incapazes e interesseiros, um atrás do outro, a dar golpe atrás de golpe bem no coração de sua esperança de eleitor.

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