São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 1995
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Estamos aprendendo a ver duas realidades

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Alguma coisa está acontecendo e você não sabe o que é, Mr. Jones. De tanto falarem na revolução digital que nos jogou na era dos computadores, decidi reler algumas coisas, como o ensaio de Thomas S. Khun sobre a estrutura das revoluções científicas. Afinal, isso é ou não é uma revolução?
Estava eu perdido nessas indagações filosóficas quando liguei meu pequeno computador e vi a frase que aparece todos os dias nas telas: "O hímen está testando a memória estendida".
Como? A frase estava ali me dizendo que as mudanças eram muito mais próximas do que imaginava; elas revolviam a base do meu próprio trabalho: as palavras.
Todos nós, pelo menos teoricamente, conhecemos um hímen. Por ele, muitos morreram, outros foram presos, milhares de mulheres sentiram-se miseráveis e deserdadas com sua perda. Até hoje, o Código Penal manda para a cadeia culpados do crime de sedução.
Hímen era apenas uma membrana. A única variedade que existia era o complacente, que deixava o invasor passar contraindo-se, com uma oriental sabedoria, para não se romper.
Arrancado de sua semielástica passividade, eis que o hímen, nesse admirável mundo digital, transforma-se numa espécie de leão-de-chácara que se põe em movimento para inspecionar a memória estendida.
Essa então vive uma formidável transformação. Outro dia mesmo, estava diante do computador da sala dizendo para mim mesmo: não posso esquecer de comprar mais memória.
É que, assim como o hímen, a memória deixou de ser virgem. Dizem que no século 21 poderá ser instalada no próprio cérebro humano. Imagino os conflitos entre a velha e a nova memória. Uma não consegue esquecer- joga tudo que é desagradável num falso limbo. A memória implantada, por seu turno, é incapaz de se acionar por um perfume, como em Proust. Como escolher uma delas, quando se quer remoer algo na memória?
Pode ser que tudo isso não seja uma revolução. Mas lendo Khun percebi que as revoluções têm algo em comum tanto na ciência como na sociedade: são precedidas de uma grande crise.
Essa atividade, por exemplo, de escrever em jornais. Quando menino, vi jornais em crise e vi da crise nascer uma mudança radical, que para meus olhos era uma revolução. Mãe é mãe, não é genitora; quem morre, morre, não falece. As palavras ficavam mais próximas, como se tentássemos escrever com a voz de João Gilberto.
Quem, por que, quando, onde e como? Era preciso contar rapidamente a história, de forma tal que o suposto apressado leitor entendesse tudo no primeiro parágrafo.
Cultivávamos a pirâmide invertida como os místicos cultivam a pirâmide de pé. Primeiro o mais importante, depois o menos importante; empilhávamos os fatos escrupulosamente e lá estava desenhada nossa pirâmide com o vértice enterrado no chão.
Mas agora a tempestade da crise não ameaça apenas a linguagem. Ameaça a existência mesma do nosso mundo de papel. Nada mortal. Mas, depois dela, não basta ficar com o pé na realidade. Teremos de ficar com um pé na realidade e outro na realidade virtual.
Já era difícil seguir um mundo limitado aos fatos e fantasias humanos. Agora, quando o hímen sai em busca da memória, sem deixar manchas de sangue no lençol, acessamos programas residentes e emergimos com as mãos carregadas de novas palavras. O que fazer com elas? Como torná-las inteligíveis num mundo de imagens?
Diante de uma simples frase na tela do computador, me convenci, finalmente, de que estamos sendo empurrados para um precipício.
Mas não me inquietei. No fundo, estou seguro de que saberemos voar. Breve, breve, teremos alguma vaga idéia de quem, o que, onde, como e por que.
Entre o papel e a tela de cristal líquido, caminhamos agora na corda bamba, buscando o menino em cada um de nós que possa dizer de novo: mãe é mãe, quem morre, morre. Não há sensação mais estranha do que sentir balançar a base do velho ofício. Aleluia.

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