São Paulo, quarta-feira, 23 de agosto de 1995
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Caetano traz a voz profunda sul-americana

FERNANDA SCALZO
DA REPORTAGEM LOCAL

Show: Fina Estampa
Intérprete: Caetano Veloso
Direção musical: Jacques Morelenbaum
Banda: Jacques Morelenbaum (cello e regência), Mingo Araújo (percussão), Luiz Brasil (violões e guitarra), J. Moraes (piano), Marcelo Costa e Tutti Moreno (bateria), Zeca Assunção e Jorge Helder (baixo) e orquestra
Quando: de quinta a domingo, às 21h. Até 10 de setembro
Onde: Tom Brasil (rua Olimpíadas, 66, tel. 820-2326, Vila Olímpia, zona sul)
Quanto: de R$ 35 a R$ 80

Foi por causa de João Gilberto -sempre João Gilberto- que Caetano Veloso decidiu apresentar no Brasil o show do disco ``Fina Estampa". Fernando Faro, diretor artístico da Tom Brasil, casa onde o show acontece a partir de amanhã, na sua empreitada de tentar convencer Caetano a se apresentar lá, deu de presente ao músico uma fita com gravações feitas por João Gilberto em 1952.
``Fiquei tão emocionado com essas gravações, estou emocionado até agora, e isso me deixou tão vulnerável, que quando o Faro reiterou o pedido, eu já não tinha muito como negar", disse Caetano anteontem, em entrevista à Folha no hotel Maksoud Plaza.
``As gravações são lindas. Isso é uma coisa que ninguém tinha dito, quando falava delas: o canto de João Gilberto ali é lindo. É ele garoto, com uns 20 anos, antes de inventar o estilo que viria a ser conhecido como Bossa Nova. Ele canta ainda sob influência do Orlando Silva. Eu conhecia de fama essas gravações, mas nunca tinha ouvido. Fiquei maravilhado, porque tudo que eu tinha lido a respeito delas dizia apenas que ali ainda não se podia ver ou prever o João Gilberto da Bossa Nova. Mas foi uma revelação, porque ali está o elo perdido, a ligação subterrânea, entre o estilo de Orlando Silva e o do João Gilberto da Bossa Nova, que sempre pareceu quase que antagônico ao de Orlando, quando, na verdade, o grande mestre cantor brasileiro do João foi o Orlando Silva."
Além do encantamento de João Gilberto, que permitiu o sim de Caetano, o show ``Fina Estampa" já tinha sido apresentado na Europa e já estava pronto. O que se vai assistir no Brasil é uma versão musicalmente ampliada. Na Europa, Caetano tocou acompanhado por apenas três músicos (Jacques Morelenbaum, Mingo Araújo e Luiz Brasil), mas aqui terá uma banda e uma orquestra que somam mais de quarenta músicos.
``Fina Estampa", disco lançado no final de julho do ano passado, reúne boleros, guarânias e outros ritmos latinos, num repertório composto na maioria por canções ``lembradas", canções que Caetano ouvia quando criança.
Uma exceção a esta regra, a música ``Tonada de Luna Llena" acabou sendo uma história de resistência quebrada tão boa quanto a que permitiu poder assistir ao vivo Caetano cantando o disco ``Fina Estampa".
A atriz Marcia Rodrigues, conhecedora de músicas hispano-americanas, atuou como consultora do disco, dando informações sobre letras e gravações originais. Ela sugeriu que Caetano gravasse ``Tonada de Luna Llena", do venezuelano Simon Diaz, porque disse que sempre que ouvia a música imaginava Caetano cantando.
``Eu ouvi e fiquei deslumbrado. Mas disse a ela que eu não poderia cantar, porque o autor é um gênio tão grande e ele canta tão bem, que não podia regravar", conta Caetano.
Marcia insistiu, Caetano ouviu muito a gravação de Diaz, e acabou dizendo sim. Um resultado: ``Recebi uma carta da filha do Simon Diaz, que me escreveu da Venezuela, dizendo que ele ficou emocionado, que chorou ao ouvir, e disse que eu cantava mais bonito que ele. O que não é verdade de forma alguma, mas para mim foi uma grande alegria."
Outro resultado: ``Chego em Madri agora e o Pedro Almodóvar tinha posto como tema final do filme dele minha gravação inteira de `Tonada de Luna Llena'. Outro presente que me veio dessa canção. O filme é lindo, `La Flor de Mi Secreto'. Fiquei honradíssimo, emocionadíssimo e agradeci muito à Marcia."
``Fina Estampa" é o segundo disco mais vendido de Caetano (250 mil cópias até agora), perdendo apenas para ``Totalmente Demais", de 1986 (290 mil).
O repertório do show é quase todo o disco ``Fina Estampa", entremeado por outras músicas hispânicas (como ``Ai, Amor", de Bola de Nieve, e o bolero ``Tres Palabras"), além de músicas brasileiras, umas dele, outras não.
``Tem alguma coisa minha, alguma coisa referente a essa história da gravação do João Gilberto, que afinal me nocauteou. Mas eu li outro dia na Folha que o João falou que esse negócio de dar roteiro de show para jornalista não está com nada. Ri muito com isso. Acho que ele tem razão, porque esfria um pouco o impacto, a surpresa, da primeira noite. Embora nada tenha de muito surpreendente no que eu vou fazer", disse.
Segundo Caetano, muitas das músicas que vai apresentar, como ``O Leãozinho", foram escolhidas pela semelhança com o repertório do disco: ``São canções, em sua maioria, mais sentimentais e numa certa medida mais ingênuas".
O repertório de boleros e guarânias remete a esse universo sentimental e às vezes cafona de que todos fazemos parte.
``Das músicas que gravei, a que sempre foi considerada mais cafona, mas além disso primária e pobre como composição, é `Recuerdos de Ypacaraí'. No entanto, é a faixa que mais gosto. Acho que ali o disco se justifica e se impõe como o que ele realmente é. Ficou uma peça elevada. Parece uma voz profunda da América do Sul. Até pelo fato de ser uma canção demasiadamente simples e quase tola."

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