São Paulo, quinta-feira, 24 de agosto de 1995
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Doa a quem doer

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Em sonhos mais delirantes cheguei a pensar em ser padre, ponta-esquerda do Fluminense e pianista para tocar as sonatas finais de Beethoven. Mesmo assim, em nenhum momento de insanidade me imaginei presidente da República. Ainda que a demência dos meus compatriotas o exigisse, a demência pessoal não chegaria a tanto.
Não sei o que faria se fosse padre ou ponta-esquerda tricolor. Como pianista não passei de um regra-três em um inferninho de Copacabana, nos anos 40. Mas sei exatamente o que não faria se, além de dementes, meus patrícios fossem truculentos e me obrigassem a presidir a nação. Seria simples: eu nunca diria a frase ``doa a quem doer".
Evidente que cometeria outras bobagens, prometeria cadeia para os corruptos, pão aos famintos, teto aos desabrigados, essas coisas. Por conta de atávica devoção a Santo Antônio decretaria o 13 de junho feriado nacional com direito a fogos e balões -instituiria um prêmio a quem conseguisse soltar balões sem buchas incendiárias. Enfim, faria as besteiras que me desse na telha e não ferissem a Constituição e os meus princípios -se é que, chegando eu à Presidência, ainda tivesse princípios.
Contudo, meu desconfiômetro me impediria de proclamar o ``doa a quem doer", tal como FHC o fez na segunda-feira. Os antecedentes em nossa história republicana são lamentáveis. Washington Luís, ao quebrar o rodízio Minas-São Paulo na Presidência, impondo um paulista à sua sucessão, fez a mesma ameaça. Resultado: a coisa doeu nele mesmo, e foi para o exílio. Jânio Quadros era outro que gostava de brandir a mesma ameaça. Doeu tanto que ele pediu o boné e partiu. O último que abusou da expressão foi Collor. Com a agravante de fazê-lo em espanhol macarrônico. É história de nossos dias.
Esse tipo de clichê oratório tem letal malignidade. É como aquele sovado ``reina a ordem em todo o país" que fazia parte dos comunicados oficiais por ocasião de crises institucionais. O mérito é que todos ficávamos sabendo que alguma desordem estava acontecendo ou iria acontecer, doesse em quem doesse. Geralmente doía em cima de nós.

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