São Paulo, quinta-feira, 24 de agosto de 1995
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O mistério do samba

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Em seu diário ``de adolescência e primeira mocidade" Gilberto Freyre narra um interessante episódio de sua visita ao Rio Janeiro, em 1926, já ``doutor" formado nos EUA e viajado pela Europa.
Citado por Hermano Vianna em seu ótimo ``O Mistério do Samba" (Jorge Zahar/UFRJ, 1995), o episódio é uma ``noitada de violão".
A boêmia reuniu, além do futuro autor de ``Casa Grande e Senzala", o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, o promotor e jornalista Prudente de Moraes Neto (do presidente da República), o compositor Heitor Villa-Lobos, o pianista clássico Luciano Gallet e... três sambistas: Patrício Teixeira, Donga e Pixinguinha.
Recorrente na história do país, o contato da elite pensante com artistas do povo encontrou na música um terreno fértil. Não por acaso, intelectuais de projeção, do próprio Freyre a Augusto de Campos, passando por Mario de Andrade e mesmo Antonio Candido, têm se voltado ao longo do tempo para essa manifestação que o sociólogo pernambucano classificou certa vez como a ``arte por excelência brasileira".
Para Hermano Vianna, o encontro serve como uma espécie de alegoria carnavalesca da invenção da tradição do Brasil mestiço.
Dentro desse movimento de construção de uma identidade nacional de inspiração popular, o samba desempenhou papel estratégico e acabou incentivado a assumir a condição de alegre emblema da nacionalidade.
Capturado pelo getulismo, não por isso morreu na praia do nacionalismo ufanista. À crise do Estado populista correspondeu um riquíssimo movimento de renovação musical.
Com ele, novamente o samba foi convocado, mas agora à luz de um Brasil que se internacionalizava, que se sofisticava e que desejava se projetar não mais como produtor de exotismo e folclore.
Seu maior artífice, ao lado de Antonio Carlos Jobim, apresentou-se no último fim-de-semana em São Paulo. Quem teve o discernimento de ir ver João Gilberto pôde rever a forma excepcional com que o samba foi resgatado das mãos do populismo para recriar, em outra plataforma, aquela que ainda é a melhor imagem moderna do país.
Sim, porque o que João Gilberto fez no terreno da música é dificílimo de se encontrar tão completamente bem-feito em algum outro lugar do país -do pensamento ao empreendimento.
É possível, como querem alguns, que a música popular tenha alcançado no Brasil um peso desproporcional diante de outras formas culturais -e que se dê atenção exagerada a uma produção que muitas vezes parece patinar em sua própria repetição.
Mas quando se ouve a voz e o violão desse notável baiano vê-se surgir, daquele ritual mântrico, a materialização de um Brasil que é uma rima e uma solução.
Ali está o supra-sumo, em forma musical, do que o país ainda pode vir a ser. Se um dia merecer ter tido João Gilberto.

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