São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Um mestre da indignação

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi numa noite do outono de 1959 que assisti pela primeira vez a ``The Fatal Glass of Beer" (1933), no extinto cinema Lincoln de New Haven. Estava passando antes de algum outro filme, não me recordo qual, porque nunca cheguei a ver: transtornado por um acesso de riso literalmente doloroso, fui auxiliado a deixar o Lincoln por um grupo de amigos, que me levaram até um bar das redondezas para me recuperar.
Desde então, já lhe assisti de novo muitas vezes, e meu juízo continua o mesmo: é o ponto sublime da arte cinematográfica, ultrapassando até ``A General", de Buster Keaton, para não falar em ``Duck Soup", dos irmãos Marx, ou ``Intolerância", de Griffith. Mas só vim a compreendê-lo, de uma perspectiva crítica, cerca de 30 anos depois daquela primeira ocasião, graças ao talento do ator inglês Alec Guinness. Numa noite de insônia, há algum tempo, acabei vendo um filme feito para a televisão, sobre os últimos dias de Hitler. Improvável como parece para o papel, foi Guinness, então, quem me ajudou -a tal ponto que depois de meia hora eu precisei lembrar a mim mesmo que este, afinal, era para ser, supostamente, Hitler. Perpetuamente indignado com o destino, os russos, seus generais covardes, os traidores e os incompetentes, Guinness-Hitler tornou-se irresistível, chegando mesmo a conquistar alguma simpatia da minha parte. Eu fora apanhado pelo que aprendi a chamar de ``estética da indignação", ou ``estética da afronta", e a arte de Alec Guinness subitamente me fez pensar em W.C. Fields (1879/1946) e ``The Fatal Glass of Beer".
É muito difícil representar adequadamente o estado de indignação. Fields foi um de seus mestres modernos; outro foi Nathanael West e, antes dele, Faulkner (com seu Joe Christmas, de ``Light in August"). O Philip Roth de ``Lição de Anatomia" e ``A Orgia de Praga" é nosso mestre contemporâneo -ele que me consolou certa vez, comentando com solenidade: ``Harold, nós estamos aqui para ser insultados!".
Nisso, como em tudo mais, Shakespeare reina supremo. Macbeth, o mais sanguinário dos indignados, retém até o fim nossa simpatia, porque sua indignação cresce sem parar, à medida que sofre as tergiversações de ``um demônio que mente como verdade". Macbeth se prolonga a si mesmo no tempo pelo assassinato, mas vê-se provocado perpetuamente à condição de indignação, quando, uma após outra, suas expectativas vão sendo destruídas. Ele nos comove, a despeito de seu temperamento ingenuamente assassino, porque ninguém resiste a uma representação forte de um ser humano no estado de indignação.
W.C. Fields, elevado a uma indignação sublime por tantas coisas -crianças, mulheres, a Filadélfia-, não é um Macbeth, nem um Guinness-Hitler, mas penso nele, às vezes, quando releio Nathanael West. Shrike, o editor jornalístico de ``Miss Lonelyhearts", é uma versão satânica do indignado, que é, ele mesmo, motivo de indignação. Também a pequena obra-prima de Fields é um exemplo de vileza sublime. A ``persona" de Fields, neste caso o terrível Snavely, que acabou de devorar com mostarda seu cão predileto, desta feita encontra parceiros à altura, em sua glacial esposa e no filho dos dois, o hediondo Chester, que é quem bebe o copo fatal de cerveja.
Ao som do refrão de Snavely -``Taint a fit night out for man nor beast" (``Uma noite dessas não é nem pra gente, nem bicho")-, o drama vai-se desenrolando, de homens pobres e desonestos à procura de ouro no Ártico, de ações roubadas, ou da próxima vez de tirar leite dos alces. Nenhuma cena de refeição em Chaplin é um páreo para o jantar dos Snavely, com Fields molhando um compridíssimo pão italiano na sopa e protegendo-o das lágrimas do filho de três anos, recém-chegado à penitenciária. Clyde Bruckman, o diretor dessa insanidade, vai preparando uma catástrofe digna de Aristófanes, até que, primeiro Snavely, depois sua gélida esposa, alternam-se quebrando jarros na cabeça do miserável filho pródigo Chester, que cometeu o equívoco de voltar para casa sem as ações roubadas, ou o dinheiro equivalente. Atirado porta fora, numa noite nem pra gente, nem bicho, a saída de cena de Chester é o final perfeito para 15 minutos de indignação contínua.
Não existe nada de mais esquálido do que cada elemento desse filme: personagens, cenário, trama, ritmo. Nosso riso, assistindo, não é alegre; a indignação, mesmo com humor, permanece indignação. Fields, um perfeccionista do excesso, exerce a arte da extravagância, de passar além dos limites, descer pelo precipício até aquele ponto onde, sem ajuda, não é mais possível voltar. ``The Fatal Glass of Beer" é uma comédia que põe em xeque a definição freudiana: o superego não está só agradando o pobre ego, antes de lhe castigar novamente. Aqui, nada em si é engraçado, nem mesmo o punhado de neve jogado no rosto de Fields, cada vez que ele entoa o refrão sobre a noite que não é nem pra gente, nem bicho. O que conta é a totalidade da indignação, mais até do que a audácia de nos jogar tudo isso na cara.
Não há afronta maior do que a necessidade da morte -a forma final de nossa indignação por estarmos indignados. E a face de W.C. Fields, em ``The Fatal Glass of Beer", mais do que em qualquer outro momento, é como uma dessas paisagens nas quais Emily Dickinson dizia ver o rosto da morte. Cada detalhe é fatal neste cosmos gelado de filme, no qual o chute de uma ex-dançarina, agora membro do Exército da Salvação, inflige sobre o rosto do filho único Chester a marca inevitável de Caim. Quebrar o tamborim da moça é um crime equivalente a assassinar um irmão, e, subitamente, nós nos damos conta de mais uma afronta astuciosa de Fields: o casal Snavely é uma versão de Adão e Eva, transpostos para as geleiras do Ártico depois da queda. O maior triunfo de Fields foi ter encontrado campos de neve que se harmonizam com seu rosto invernal, a face de um Adão gnóstico, brutal e malicioso, de uma vez só senhor e vítima de um estado hobbesiano, ou animalesco da natureza.
``Afrontas, afrontas e mais afrontas" poderia ser a divisa estética de Fields. Mas qual é a sua contribuição específica à estética da indignação? Em Shakespeare, o ponto mais alto nessa vertente é a farsa trágica ``Timão de Atenas" -talvez, de todas, a única peça shakespeareana ainda não reconhecida na medida de seus enormes méritos. O Timão dos últimos atos se sentiria muito em casa nos momentos finais de ``The Fatal Glass of Beer". Indignação pela injustiça enlouqueceu Timão, mas qual é a fonte de indignação de Snavely? Vale dizer: qual é realmente a fonte de indignação de W.C. Fields? (A questão, naturalmente, é estética, não pessoal).
Um dos maiores gênios cômicos da história, Fields indigna-se com os limites da própria natureza. ``The Fatal Glass of Beer" é um dos curtas-metragens mais americanos que existem, e a afronta final, aqui, é a do pai americano, que assassina seu único filho, um filho insuficientemente selvagem e autoconfiante para sobreviver no estado bárbaro da natureza paterna.
Essa parábola cômica é uma versão grotesca da história bíblica do filho pródigo. Fields, que não quer, ou não pode, nos poupar uma afronta, é um artista da paródia, à maneira do Shrike de West. Como espectadores, nós somos Miss Lonelyhearts em relação a Fields, que é Shrike. Fields é o pássaro carniceiro que vem nos impalar sobre os espinhos. Somos nós que ele devora. Mas morremos rindo -como eu, naquela noite no Lincoln. Só os maiores dentre os maiores artistas sabem fazer o que ele faz: vincular sua indignação àquilo que mais o indigna -e a nós, também- que é a necessidade da morte.

``W.C. Fields, World's Funniest Man". Inclui três curtas-metragens: ``The Golf Specialist". ``The Dentist" e ``The Fatal Glass of Beer". Goodtimes Home Vídeo, 57 minutos, preto e branco. US$ 6,99

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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