São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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CINEMA COM ARTE

ALCINO LEITE NETO
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Por que fazer cinema -e afinal o que é o cinema? Foram estas as questões iniciais propostas pela Folha para o diálogo de Júlio Bressane com Rogério Sganzerla.
Por impossível que seja concluir sobre a razão do cinema, por si só as questões definem o lugar de onde falam estes dois diretores. Um lugar em tudo diverso daquele onde transitam hoje, unânimes, boa parte dos realizadores. A nenhum dos dois, em nenhum momento, cinema sugere indústria, comércio ou entretenimento. Cinema é, para início de conversa, prazer, exploração de limites, autoconhecimento, reprodução de processos mentais.

Júlio Bressane - A primeira coisa que eu talvez possa dizer é que se começa a fazer cinema para divertir. O aprendizado, a afirmação pessoal, o auto-aperfeiçoamento, a descoberta da extensão do cinema, tudo isso vem muito depois. De início, é um movimento afetivo, o forte apelo da brincadeira propiciada por ele. O cinema é um organismo intelectual demasiadamente sensível. Quer dizer, a extensão dele, seus limites, as fronteiras que faz com todas as disciplinas, com todas as artes e ciências -tudo isso você descobre mais tarde.
Rogério Sganzerla - O cinema traz um sentido todo novo, embora concretize coisas antigas, que vêm, por exemplo, da idéia platônica das projeções, das sombras chinesas. O prazer em assistir a um filme realiza um pouco essa história, embora você possa também encontrar um certo desprazer em fazer cinema, o que é uma coisa diferente.
Bressane - Esta é justamente uma das questões difíceis do cinema. Porque quem gosta muito de uma coisa acaba querendo saber o que é isso. E o cinema, ao contrário talvez da literatura e da música, você não aprende. É preciso fazer cinema para ver o quanto não se sabe sobre ele, como é difícil a reprodução daqueles clichês -e muito mais a invenção deles.
Sganzerla - O cinema talvez seja um atributo que se tem, Júlio, do qual o fundamental é o ritmo. Com o ritmo, você nasce -ou não. Não existe meio termo. É a expressão italiana: ``Io sono nato cosi". Cinema é caráter, a fibra da pessoa, da persona. Fora isso, é preciso o exercício, a vontade.
Bressane - O exercício, o aprimoramento... O cinema não foi explorado ainda. Não tem o seu desenho terminado. Vanguarda ou experimentalismo não são rótulos ou uma fumaça a esconder o principal: significam justamente esse esforço imenso, esse sacrifício de extrema intensidade sobre o objeto que se está fazendo.
Sganzerla - Exato. E o que me parece mais grave aqui no Brasil, nos Estados Unidos e no cinema em geral, hoje, é a total ausência de mise-en-scène. O filme tem os melhores fotógrafos, os melhores roteiristas, bons dialoguistas, todos aqueles atores, mas a mise-en-scène, que é essencial, nada...
No entanto, você a encontra em qualquer filme de qualquer cineasta primitivo do início do século. Numa época em que era difícil, quando se tinha poucos recursos, aquela relação era criada -porque a mise-en-scène é a relação entre os objetos. É a distância entre o ser e o objeto. É uma escolha.
Não existe mais mise-en-scène porque não existe escolha. Pôr em cena (``mettre en scène") significa exatamente escolher as distâncias e as durações. Mas falta aos filmes, talvez, humildade em relação ao tema proposto. Falta também estudo cinematográfico, o conhecimento profundo da árvore genealógica do cinema. Mesmo quando o cinema americano incorpora o cinema alternativo, o que eles fazem é completamente destituído da questão essencial, que é talvez uma forma de delicadeza para com as coisas e o mundo.
Bressane - Concordo com você, Rogério. Eu tenho uma expectativa do cinema: na verdade, é uma escolha relacionada a uma certa compreensão da luz. A questão do cinema é, antes de qualquer outra, uma maneira de se compreender e de se apreender a luz. Isso, com um sentido do ritmo, porque cinema é a ilusão do movimento -sabe-se que não há movimento contínuo no cinema. É desse ponto de vista que eu hoje olho para o cinema, a partir disso, o que no fundo é uma formulação antiga do Abel Gance, um desses grandes metteurs-en-scène.
Sganzerla - O cinema é a música das imagens, ele dizia.
Bressane - Que é a música da luz, não é? O cinema é a música da luz. Essa formulação não só é a mais inteira, mas é belíssima. O filme é constituído de um fotograma transparente, branco. O que escreve a imagem, o que organiza a imagem é a sombra, que é aquilo que organiza o que não é nada. A sombra.
Sganzerla - Você não obtém o branco se não tiver o preto.
Bressane - Por isso é música. Porque tudo o que se organiza é música. E música da luz, porque é uma maneira de você recortar a luz, em movimento. Você pode ter a idéia de um cineasta ideal, mas é uma personalidade que dificilmente existirá. A exigência do cinema jamais poderá ser preenchida por uma só pessoa. Um homem de espírito medieval, que pudesse ter um vasto conhecimento de todas as disciplinas, de todas as ciências e tivesse também o talento de organizá-las e fazê-las em filme, esse ser ideal, que é o cineasta, evidentemente são várias coisas: você tem que ``montá-lo" a partir de muitos fragmentos.
Sganzerla - Godard disse na década de 50: ``o verdadeiro cinema consiste somente em pôr os seres e objetos diante da câmara". Depois, num filme de 1965, ``A Mulher Casada", ele disse: ``o cinema é um mistério". Mais tarde, foi aquela frase do Lumière em ``O Desprezo": ``O cinema é uma invenção sem futuro", ``senza avenire". Ele colocou em italiano, porque foi filmar na Cinecittà, os estúdios em Roma.
Lumiére achava que o cinema era um espetáculo puramente científico, que perderia a informação devido à redundância natural. Méliès achava o contrário: que podia criar. São caminhos, enfim. A gente não sabe bem o que é o cinema, mas sabemos bem o que não é cinema, que é o que estamos vendo hoje. Por exemplo, essa marcação de cenas em que as pessoas são confinadas: você tem um amplo corredor, e elas ficam dentro de uma sala, sentadas, feito uns patetas, isso é a anti-mise-en-scène. É pior do que novela.
Naquele filme do Spielberg, ``O Parque dos Dinossauros", por exemplo, que foi o maior recorde de bilheteria e é muito bem filmado, não existe mise-en-scène. O que falta hoje em dia é a ausência de ornamentação, a essencialização da forma que se vê, por exemplo, em Robert Bresson. E pior do que tentar discutir o que é cinema com quem não sabe ver cinema é fazê-lo com aqueles que não sabem fazer.
O importante é que os filmes tenham uma forma. O filme é uma espécie de computador. Nós não temos ainda esse registro do pensamento humano que poderia ser comparado à definição do Abel Gance. Quer dizer, a música da luz, mas que poderia ser a música da luz e do som -e da fúria.
Bressane - O cinema é um processo de registro do pensamento.
Sganzerla - Isso a crítica não coloca. É uma coisa básica em filmologia, por exemplo. Perguntaram ao Alain Resnais por que ele pulava entre tantos estilos diferentes, e ele disse: ``Porque eu acho que o cinema é uma forma de reprodução do pensamento; eu chamo um escritor, faço o roteiro e depois o transformo numa outra linguagem, num `tableau vivant' (quadro vivo)".
Bressane - Eu não conhecia a formulação do Resnais, mas é este o conceito: a imagem cinematográfica é uma espécie de uma mancha-pensamento. Porque o cinema, a imagem, na verdade, reproduzem meios de pensar. É isso que a luz e o movimento dos 24 fotogramas fazem. O cinema é a expressão de um processo de pensamento.

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