São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 1995
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O Espírito dos tempos

JOÃO SAYAD

Os habitantes de uma cidade grande têm pouco tempo para pensar, esmagados pelo trânsito congestionado, pelo ritmo das agendas, pelos almoços de negócios, pelas conversas interrompidas por telefonemas. Eu tenho tempo para refletir nos finais de semana, quando geralmente viajo pela via Dutra, atravessando o Vale do Paraíba.
Para mim, a via Dutra é uma estrada pelo espírito dos tempos. Antes de mais nada, me lembra da infância, do ``Sítio do Pica Pau Amarelo" e das ``Cidades Mortas" de Monteiro Lobato. Depois, já na minha adolescência, quando era a estrada do desenvolvimento de Getúlio e Juscelino. Saímos para o Rio de Janeiro bem cedo comentando sobre grandes retas da estrada -o trecho de Jacareí, em São Paulo, as retas de Rezende, no Rio, e na Baixada Fluminense. Que estrada! Quanto progresso!
Hoje é uma estrada perigosissíma. Meus pensamentos de estrada e de fim de semana são interrompidos por cenas horrorosas de desastres. A tensão é grande por causa dos buracos, transporte de cargas perigosas por imensos caminhões, grandes engarrafamentos. Uma estrada-assassina, talvez uma das pistas de maior movimento no Brasil e onde morrem mais brasileiros por ano. É o reflexo vivo e rodoviário dos anos 80.
O espírito dos anos 80 é o de controle dos gastos públicos, economia, eficiência. O capitalismo do café de Monteiro Lobato nos anos 30 é substituído nos anos 90 pelo capitalismo corta-gastos, controla o déficit. E o resultado é essa estrada cheia de buracos.
Como será possível acreditar, como nosso tempo acredita, que evitando gastos de manutenção da estrada, desmantelando a Polícia Rodoviária Federal que no passado produziu até heróis de seriados de televisão, a inflação poderia ser reduzida? Somos de fato escravos do tempo.
Nos anos 1200-1300, a Inquisição queimou centenas de milhares de mulheres acusadas de bruxaria. Barbárie? Nos anos 80 e até os dias de hoje a via Dutra mata milhares de brasileiros para reduzir a taxa de inflação.
Mudaram os tempos, os anos 80 acabaram, e entramos na última década deste século. Chegamos, segundo o filósofo nipo-americano, ao fim da história e fêz-se a luz! A via Dutra foi ou está sendo privatizado, e nas mãos do setor privado ficará livre da ineficiência do setor público, da corrupção, dos buracos, dos desastres etc...
Somos de fato escravos do tempo. Outro dia falei com um banqueiro sobre a privatização e o financiamento da ``nova via Dutra". Como será, quanto ser'agasto para aumentar a capacidade da via Dutra privada? A resposta foi assustadora. ``Depende. E nestas questões chegamos a uma situação desagradável. We must play God". Falou um bom jargão financeiro inglês. Como play God, como fazer o papel de Deus?
Trata-se do seguinte: os gastos necessários para recuperar a estrada podem ser estimados em US$ 1 bilhão ou US$ 2 bilhões. Depende das taxas de juros e da taxa de retorno requerida no investimento.
Quanto maior de juros e a taxa de retorno requerida na estrada privatizada, menos investimentos serão feitos e mais brasileiros morrerão. Quanto menor as taxas de juros, mais investimentos, mais segurança e menos acidentes. Meu Deus do céu, que fim de história!!!
O cálculo econômico, a eficiência máxima, o capitalismo turbinado, acabam determinando quantos vão morrer em função das taxas de juros. O pensamento dos anos 90, destes nossos dias, não consegue impor barreiras ao mundo dos negócios que invade o mundo da vida. É a teoria do ``capital humano" -caso ou não caso, tenho filhos ou não tenho filhos em função do retorno esperado.
Não é de se estranhas que os americanos dos anos 90, do país líder do nosso tempo, não tenham primos. Não é possível calcular a taxa de retorno de um primo! E ele sempre pode pedir algum dinheiro emprestado, se a s coisas não estiverem indo muito bem, por causa dos compulsórios, das taxas de juros, do leasing limitado, inadimplência etc. Você sabe como é.
Será possível preservar um bom e largo espaço na cabeça da gente para pensar livre do espírito de cada época? Se a liberdade for total, corre-se o risco de ter que tomar cicuta, como Sócrates, ou ser queimado vivo como as mulheres vítimas da Inquisição. Obedientes e ortodoxos ao espírito do tempo passamos a inquisidores cruéis e deixamos a via Dutra apodrecer, cheia de buracos, curvas perigosas e brasileiros mortos nos acostamentos.
A decisão é muito mais complicada ainda no caso dos chefes de Estado. Precisam prestar uma homenagem séria e oficial ao espírito da época -vamos cortar o déficit público, a inflação é a pior inimiga do povo, o Estado é ineficiente, a taxa de juros tem que ser alta etc. etc. etc. Mas, um chefe de Estado depois de todas as homenagens e respeito a Inquisição do período, precisa ter um espaço, que não precisa ser revelado para não ofender ninguém, para pensar livremente e preservar a vida. A qualquer nível de taxa de juros.

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