São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 1995
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Marisa Monte, Fernanda Abreu e o Brasil que é de mentirinha

ANDRÉ FORASTIERI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O cara tem 22 anos. Não morreu por sorte. Quando entraram atirando e espancando, no meio da noite, ele levou uma porrada na cabeça e desmaiou.
Acordou seis horas depois, sangrando pelos ouvidos, nariz e boca. Deve perder a visão de um olho, quem sabe a audição. Quem mandou baterem nele, foi ele quem escolheu. Quer dizer: ele votou no governador que boto a PM para assassinar a rapaziada em Rondônia.
No hospital, tentaram matar o cara. Mas no quarto dele, ficavam o tempo inteiro dois caras da PM, dois da Polícia Civil -uma polícia vigiando a outra- e mais dois caras da Pastoral da Terra para vigiar as duas. No final, teve de vir, escondido, para São Paulo.
``Pantera", apelido colocado pelos tiras, diz que não está desanimado. É assim mesmo, ``vivendo, apanhando e aprendendo".
Esse Brasil, o Brasil dos fodidos e mal pagos, das torcidas homicidas e dos desempregados desdentados, tem pouca representação musical consumível por nós, a classe média que lê jornal e se acha ``elite". Achamos esses baitolas uns fedorentos. Nosso negócio é Nova York, underground, multimídia e Internet.
Não me incomoda tanto quando simplesmente ignoramos a existência desse Brasil. Lidar cotidianamente com a opressão e a miséria deste país é dose para leão. Tem hora para levar essas coisas a sério, seríssimo, e tem hora para ir gastar um monte de dinheiro em bobagem, danem-se os pobres do mundo.
Me incomoda muito é quando tentamos dar conta desse Brasil através de uma sensibilidade falsamente moderna.
É o caso específico de Marisa Monte e Fernanda Abreu. As duas são jovens, bonitas, talentosas, cantam, dançam, compõem, têm grana e amigos descolados. Ambas trabalham com música brasileira. Cada uma de um jeito, ambas tentam dar conta desse Brasil constrangedor, feio, chato, pobre e sem solução.
Vi os clipes das duas, na sequência, esses dias. As duas músicas, ``Segue o seco" e ``Veneno da lata", são perfeitamente OK. Bacana. Louvável. Então, porque me soa tão falso, tão de mentirinha, tão de butique? Tão nefasto?
Porque é de butique mesmo. Minha impressão sobre os dois clipes é de que eles são, ahn, publicidade (adivinhão. Claro que videoclipe é publicidade, ligeiramente disfarçada).
Digo publicidade no sentido mais escroto e pérfido do lance mesmo, domínio de caras ignorantes, consumistas e metidos a besta, que um amigo meu formado na ESPM chama de ``publicitutos".
Nos dois clipes, as divas da zona sul aparecem cercadas de uns figurantes miseráveis, ``populares". Não percebem que glamurizar a injustiça com uma fotografia caprichada e uns ângulos moderninhos perverte o objetivo original -revelar e iluminar (com as não tão parcas assim armas da música pop) a vida brasileira.
Para ser mais palhaço: imagine um alienígena do planeta Zenn-La descendo no Brasil. Ele poderia entender assim os dois clipes: ``neste país, a maioria da população é `parda', disforme pela má alimentação e com evidentes baixos índices de proteína no organismo. Eles idolatram como deusas mulheres de pele alva, belas e inteligentes. Generosas, as integrantes desta raça superior e dominante se deixam tocar pelos fiéis. Os rituais de adoração envolvem danças, cantos e batuques".
Veja bem, amigo leitor, não estou querendo advogar o realismo socialista como estética-padrão, não. Dá para ser brasileiro, moderno, honesto, inteligente e tudo mais de bacana e positivo, sem ser chato. Era o caso dos Paralamas no álbum ``Selvagem?", talvez o principal marco dessa coisa para a geração 80. É o caso do Mundo Livre S.A. É o caso do Chico Science.
É o caso de Daúde, uma ótima cantora e ótima compositora, que fez um grande disco, um lindo clipe e, para completar, ainda é bonita. É o caso de bastante gente, na música e em muitas outras áreas.
Gente em número suficiente para um cara ser otimista, como eu sou, sobre esse país dominado por gente tão calhorda, tão insensível e tão pobre de espírito.
Não é o caso de Marisa Monte e Fernanda Abreu. Duas brasileiras bonitas, talentosas e irrelevantes.

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