São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 1995
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FHC e ACM, pistoleiros do entardecer

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A té que ponto um tiro nas nádegas pode mudar o sentido da história? Stephen Jay Gould responde a essa pergunta no ensaio ``A Nádega Esquerda de George Canning e a Origem das Espécies".
Por um caminho longo e sinuoso, acaba nos convencendo de que o tiro que o visconde de Calaghan acertou em Canning contribuiu para a ascensão do presidente norte-americano Andrew Jackson e acabou dando a Charles Darwin a chance de viajar no HMS Beagle, para fazer, ao cabo de cinco anos, uma revolução na história da biologia.
George Canning teria levado um tiro na coxa, mas Stephen Jay Gould garante que fez pesquisas específicas e confirmou que o disparo atingiu a bunda do político inglês, às 6h da manhã de 21 de setembro de 1809, em Putney Heath. Terminava mais um duelo entre nobres.
Impossível reproduzir aqui todos os elos da cadeia que conferiu tanta importância histórica à nádega esquerda de Canning. Caminhando pelo Pelourinho restaurado, obra de ACM, constato apenas que os duelos no Brasil também acabam marcando o início de uma nova fase na vida nacional.
O Brasil tem fascínio por duelos. Lacerda, por exemplo, se deixou embalar por esse mito e cumpriu à risca seu papel. Bateu-se contra vários governos democráticos e só atenuou seu ímpeto de oposição durante a ditadura militar.
Getúlio Vargas dando um tiro no peito esgotou dramaticamente o tema, porque uma coisa é uma bala no peito e outra, uma bala na nádega esquerda.
Muita coisa mudou depois de Lacerda. Mas ainda viaja no inconsciente coletivo o clima de duelo, do tipo ``esta cidade é pequena demais para nós dois".
É como se vivêssemos num lugarejo com uma rua central empoeirada e estivéssemos espreitando de dentro do saloon: lá fora, dois homens caminhando, um de costas para o outro, quase prontos para o disparo fatal.
Aqui no Pelourinho, as lojas ostentam o retrato de ACM. Ele é querido por muitos porque, às vezes, soube como ninguém captar o espírito da Bahia.
Aqui, até os mendigos foram atingidos pela derrocada do Econômico. Pedem dinheiro e quando você nega, perguntam: também era cliente do Econômico? Os símbolos baianos foram golpeados pela queda: Jorge Amado protestou na porta do banco, o trabalho de Irmã Dulce está ameaçado e o próprio time do Vitória ameaça entrar em pane.
ACM estava furioso e, portanto, maduro para avançar contra pano vermelho que a imprensa lhe estendia, fascinada por ele.
Repórteres são humilhados no cotidiano; esperam horas nas ante-salas, há quem fuja deles ao telefone; e, em certas mansões, costumam soltar os cachorros quando insistem.
Ninguém faz ACM esperar um minuto; jamais deixam de retornar suas chamadas e ele tem o espaço que precisar para qualquer uma de suas idéias.
Além disso, o duelo seria um excelente e simples desfecho para a história. A caminhada do Congresso para o Palácio bem poderia ser uma daquelas cinematográficas caminhadas na relva inglesa, os padrinhos de terno escuro, testemunhas de um encontro fatal que lava a honra e redefine o poder.
Nem ACM nem FHC (transformados em iniciais para encurtar títulos) sabiam, naquele momento, que eram pistoleiros do entardecer, aqueles heróis do faroeste que, com o tempo, haviam se tornado míopes e já não podiam mais alojar as balas com a precisão da juventude.
Muito menos a imprensa se deu conta de que duelos já não eram mais a maneira de contar a história, que o enredo nacional tinha se tornado complexo demais para terminar nas mãos de apenas dois homens na solidão do Planalto.
A bala na nádega de Canning acabou nos dando ``A Origem da Espécies", de Darwin. Mas o que podem nos dar as balas de festim trocadas em Brasília?
Até que ponto essa poeira que o duelo levantou na praça principal não ofuscou a derrocada de um imenso banco, com todas as suas implicações?
Agora que sabemos que o homem veio do macaco e que os duelos se esgotaram como desfecho de uma história complicada, somos forçados a buscar saídas mais complexas e deixar de lado os sensacionais enredos infantis?
Se foi possível encadear os fatos para mostrar a importância política e científica da bala na nádega de Canning, pesquisadores do futuro poderão fazer o mesmo com o furo na meia do presidente.
É o que restou como lembrança do grande embate de dois homens e muitas câmeras. O papel do furo na meia e a demarcação das terras indígenas, o furo na meia e a cura da Aids...
Ainda é muito cedo para olhar para trás com a mesma tranquilidade com que Gould examinou as nádegas de Canning.
Mesmo porque estamos todos sujeitos a uma recaída e amanhã pode surgir um novo Kid Sebastião para salvar nossas vidas, saldos bancários e fé no futuro.
O filme está cada vez mais velho, o bangue-bangue, sem inspiração e a pipoca, fria. Enfim, está na hora de o bispo Macedo comprar mais um cinema arruinado.

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